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LP NO BRASIL II

O    A P L I C A T I V O    D O S    S O N H O S

 

 

 

Carlos Felipe Moisés*

 

O que seria de nós, na sociedade real em que vivemos, sem as centenas, os milhares de prestimosos aplicativos à nossa disposição? A sensação é de que o caos reinaria, absoluto. Antigamente, uma voz sábia nos alertava: “Don’t leave home without it”, e graças ao alerta descobrimos, maravilhados, como o dinheiro de plástico é imprescindível. Hoje, essa mesma voz diria: “Nem pense em começar o dia sem eles, os aplicativos”. E ficaríamos sabendo que já não somos sequer capazes de imaginar como foi possível viver, antes disso. Aí estão, para gáudio de todos nós, os aplicativos. A vida para valer, finalmente, começa agora.

Música, cinema? Não perca tempo saindo por aí à procura do que lhe interessa, sempre esbarrando no que não lhe interessa. Baixe o aplicativo adaptado ao seu gosto (se preferir, pode chamar de “customizado”) e, com dois ou três toques na telinha, você só ouvirá ou verá o que de fato vale a pena ser visto ou ouvido. Bateu aquela fome, repentina? Não se desespere com a perspectiva de horas perdidas no trânsito, à procura da cantina, do restaurante ou do barzinho que lhe satisfaça o apetite. Com o aplicativo certo, você receberá em casa, em poucos minutos, a comidinha desejada. E por aí vai. Não tem fim, não é mesmo? Hoje temos aplicativos para tudo.

E pare de se preocupar com a impressionante variedade de ofertas: existem aplicativos que o ajudam a procurar os aplicativos de que você precisa. O risco, irrelevante, é você se esquecer do que precisa, passando a achar que só precisa de... aplicativos. O que fazer com eles não pode ficar para depois? Sempre haverá uma tarefa ou função às quais o novo aplicativo, como o nome diz, se aplica. Se você ainda não sabe, logo ficará sabendo. O importante é calcular a energia que se poupa, o tempo que se ganha – tempo e energia a serem aproveitados, claro, para baixar mais aplicativos. Não hesite, não seja cético: baixe todos. E dê o devido valor à rara sensação de segurança que advém de estar devidamente preparado (você ainda não tem todos os aplicativos do mundo?) para enfrentar toda e qualquer tarefa que apareça pela frente. O que de fato conta não é o que fazer, mas como fazer, com a certeza inabalável de que, seja o que for, você será bem sucedido.

Rimbaud e outros sonharam, um dia, com a “verdadeira vida”, sonho irrealizável, coisa de poeta. Nós não precisamos nem devemos sonhar, é só desfrutar da verdadeira vida que os aplicativos, em boa hora, nos oferecem. Se você não acabou de nascer (ter acabado de nascer, aliás, é a condição ideal: “Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo”, como dizia outro poeta, Alberto Caeiro), e já conta com alguns anos na bagagem, poucos ou muitos, tanto faz, talvez se lembre do tempo em que as pessoas se martirizavam, querendo saber quais as suas “reais” (?) necessidades, quais as tarefas ou compromissos que realmente valia a pena assumir. Coisa de um passado longínquo, a ser esquecido. Hoje, você não tem mais necessidades, no plural, tem uma só: acumular aplicativos.

 

Desde que ingressamos nessa era bem-aventurada (confesso que não reparei quando isso começou, mas tanto faz: hoje sabemos que sempre foi assim), eu não tenho a menor dúvida: aí está, finalmente, a vida para valer, a verdadeira vida. O que se espera é que cada um tire daí o melhor proveito, cada qual à sua medida. Sim, é verdade: os aplicativos se multiplicam, seu número cresce a todo instante. Mas a cada um de nós é não só facultado como obrigatório imprimir às suas escolhas a sua marca pessoal, exclusiva. Ninguém está aqui para aplicar mecanicamente a seja lá o que for (outra vez, os aplicativos!) a fórmula mágica que os inimigos da liberdade nos tentarem impingir. Cada caso é um caso, e só graças aos milhares de aplicativos à nossa disposição é que essa antiga verdade pode ser efetivamente confirmada.

Pois é, verdade milenar, que segue contando com o endosso de todos. Não conheci, até hoje, ninguém que a contestasse. E não serei o primeiro. Cada caso é um caso (quem não assinaria embaixo?) e estamos conversados. Estamos conversados? Bem, ainda não. Proponho que conversemos um pouco a respeito. Em primeiro lugar, tal verdade não é um ponto de partida, uma perspectiva que se abra a cada vez que nos deparamos com um problema a resolver, um viés seguro que nos oriente no encalço da solução específica que cada caso requer. Sabemos que deveria ser assim, mas insistimos em buscar, para cada caso (sempre único, não é mesmo?), a solução genérica, já devidamente testada e comprovada em casos similares, como se todos os da mesma família ou espécie fossem iguais. “Cada caso é um caso” abre uma perspectiva assustadora, essa que nos levaria a desistir de saber ou conhecer seja lá o que for. Por isso endossamos a magnífica verdade, sem hesitar, no mesmo gesto com que a repelimos, excluindo-a de nossos horizontes.

Apesar de Kant e Spinoza, Nietzsche, Wittgenstein e tantos outros pensadores que conhecemos e admiramos, continuamos a ser empedernidamente cartesianos, ao menos no que se refere ao velho e persuasivo discurso sobre o método para bem conhecer a razão e buscar a verdade nas ciências. O que nos move e comove é só o método, seguro e infalível. Não somos capazes de dar alguma atenção à realidade dos fatos senão quando a Razão e as Ciências parecem não dar conta da tarefa. Então exclamamos, com um suspiro de desconsolo: “É... Cada caso é um caso”.

Saber ou conhecer não é um processo dinâmico, em permanente expansão, que nos permite corrigir, a cada tentativa, os erros cometidos nas tentativas precedentes? “Cada caso é um caso” inviabiliza essa possibilidade, e vem a ser tão só o resultado a que chegamos, desolados, depois de tentar a infalível solução genérica, abrangente, e verificar que esta não é suficiente para explicar o que cada caso requer. Algo sempre escapa. A não ser que nos satisfaça lidar com tipos, padrões e modelos abstratos, abrindo mão da realidade concreta dos fatos.

  

Cada caso é um caso... O meu é simples. Dentre as muitas tarefas às quais me dedico, uma há, só uma, que é, para mim, absolutamente vital, imprescindível: analisar e interpretar poesia. É o que tenho feito, a vida toda, sempre com renovado prazer, apesar das crescentes dificuldades. E não abro mão. Por que? Porque, dentre as tarefas que já tentei realizar, essa é a única imune à repetição, à rotina. Assim como cada caso é um caso, cada poema é um poema. Analisar e interpretar um deles não é tarefa que possa ser reduzida a uma fórmula, a uma receita aplicável a qualquer outro. Por essa razão é o que mais gosto de fazer, é o que tenho feito, e continuo a fazer, como se cada vez fosse a primeira vez. E também como se fosse a última. (Você vê alguma incongruência nisso? Se a resposta for afirmativa, então esse tema – o aplicativo dos sonhos – não é para você.) Se analisar e interpretar poesia pudesse ser convertido em fórmula, nem valeria a pena tentar. Que graça pode ter dedicar-se a esta ou àquela tarefa sabendo de antemão onde se vai chegar? Nenhuma novidade, nenhum desvio, nenhum imprevisto, nenhuma surpresa? Melhor nem chegar perto.

“Receita ou fórmula aplicável a qualquer poema”... Pois é, aí temos, outra vez, os aplicativos. Por isso não me sai da cabeça: um aplicativo para analisar e interpretar poesia. Para mim, é o aplicativo dos sonhos, dos meus sonhos. A primeira vantagem seria desobrigar os poetas, quase sempre constrangidos, de fazerem acompanhar seus poemas da competente declaração de intenções: aqui tencionei dizer isso, ali já quis dizer aquilo, e por aí vai. Só um bom aplicativo seria capaz de demonstrar que declarar ou adivinhar intenções não é analisar nem interpretar, e que, se o caso for “ler poesia”, especular sobre as intenções é um mau começo. A segunda seria provar que ler um poema não se limita a passar os olhos pelas palavras que o constituem, e, com alguma reverência, concluir: gostei. Ou não gostei. Gostar é só um ponto de partida, aliás imprescindível, mas é necessário que isto se dê antes de ler. Ler é o que pode acontecer depois e consiste em verificar o que foi realmente dito e não que intenções levaram o poeta a escrever.  É bem diferente, por exemplo, de distinguir entre bola na mão e mão na bola. Onde mais, além do reino encantado do futebol, as intenções contam para alguma coisa? A terceira e última vantagem, a mais valiosa, é que tal aplicativo proporia não a minha nem a sua interpretação, sempre tendenciosas, unilaterais, mas uma interpretação impessoal, objetiva e isenta, justa.

De quebra, ficaríamos livres também da ideia (?) segundo a qual um poema terá tantas interpretações quantos forem os leitores que dele se acercarem – outra “verdade” inquestionável, endossada até por especialistas... Se fosse assim, por que precisaríamos do poema? Ficaríamos só com a infinita variedade de leitores possíveis, cada qual com o seu legítimo direito de enxergar o que bem entenda, de fantasiar e devanear no rumo que preferir, aleatoriamente. Por que simular que estão tentando analisar e interpretar um poema? É claro que cada poema admite mais de uma interpretação, mas não na medida da infinita variedade de leitores que eventualmente dele se aproximem, e sim no limite estrito da complexidade e das ambiguidades formuladas pelo próprio poema. Não se trata, pois, de contrapor a interpretação plausível, porém unilateral, de determinado leitor, a outra interpretação, igualmente plausível e também unilateral, de um segundo leitor, e assim por diante. Se o poema de fato comporta mais de uma interpretação, daí decorre que a mais adequada  – o aplicativo dos sonhos – será não esta ou aquela, mas a que for capaz de dar atenção a todas elas, ainda que eventualmente “contraditórias” ou “excludentes”.

 

Ler poesia é tarefa que exige reflexão apurada, sentir e pensar, no mesmo ato, foco, atenção, concentração, conhecimento de causa, senso de objetividade, capacidade de discernir, deduzir, armar raciocínios, desenvolver argumentos plausíveis, e sobretudo aceitar que algo pode ser isto e aquilo, ao mesmo tempo, sem que sejamos obrigados a optar por isto, em detrimento daquilo, ou vice-versa. Se você achar que esses atributos valem para qualquer tarefa, menos para “ler poesia”; se você achar que ler um poema nem tarefa é, não passando de inócuo passatempo, estritamente pessoal, subjetivo, intransferível, que não pode ser traduzido em palavras; então, repito: meu aplicativo dos sonhos não é o aplicativo dos seus sonhos.

Já sabemos: cada caso é um caso. O seu, evidentemente, é outro. Qual é, então, o seu caso? Qual é o seu aplicativo dos sonhos? Claro, entendo perfeitamente: você não tem tempo a perder com isso. Todo o seu tempo há de ser consumido na doce tarefa de colecionar aplicativos, todos os aplicativos do mundo, não é verdade? Então, seja coerente (afinal, nunca se sabe): inclua no seu repertório um aplicativo para analisar e interpretar poemas. De repente aparece um por aí. Um aplicativo? Sim. Ou, quem sabe, um poema.

Mas será só o aplicativo dos sonhos, algo que não pode ser convertido em realidade. Não porque não haja no mundo inteligência suficiente para se servir da lógica binária, dos algoritmos e dos protocolos, para criar a tão desejada (por mim, claro) ferramenta. Hal, o protagonista de 2001: uma odisseia no espaço, não teria analisado à perfeição o poema que quisesse, se isso estivesse nos seus planos? Não seria fácil, reconheço, mas nada impossível. O aplicativo, no entanto, jamais poderá ser baixado para o seu tablet ou smartphone, pela simples razão de que não é economicamente viável. A pergunta que determina a criação de aplicativos não é “para que serve?” e, sim, “quanto custa?” e, mais ainda, “quanto vale?”. Um aplicativo para analisar e interpretar poesia custaria muito caro. E não valeria nada.

Você não acredita? Continua cético? Então (ficção por ficção, esta seria só mais uma), ofereça na sua rede social um fantástico aplicativo para analisar e interpretar poemas, cobre a bagatela de R$ 0,10 (isso mesmo, dez centavos – de real, não de euro ou dólar) pelo uso ilimitado da licença, e prepare-se para o resultado. Quem se interessaria pela esplêndida maravilha? Qual seria a demanda? Por isso, nenhuma plataforma se arriscaria a investir os vultosos recursos necessários à consecução de tão preciosa engenhoca. Então (que remédio?) continuemos sonhando. Analisar e interpretar poesia? Por ora, só à moda antiga, à margem do admirável mundo novo dos aplicativos. 

 

 

 

* Nascido em São Paulo, Brasil, Carlos Felipe Moisés é poeta (Disjecta membra, 2014), ensaísta (Frente & verso: sobre poesia e poética, 2014) e ex-professor de literaturas de língua portuguesa da Universidade da California (Berkeley) e da Universidade de São Paulo.

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