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Cuentos

A MARCA

 de Ronaldo Cagiano

 

 

 

Depois fica a marca. Depois fica o medo.

E depois fica a vida com seus dedos quebrados

tateando um mapa na tentativa de esquecer.

         Álvaro Alves de Faria

 

 

         Lembrou-se de um sábado escuro e malfazejo em que a vida tinha lhe preparado uma triste recepção.

            Naquele dia, havia recebido um telegrama: “Seu pai morreu de madrugada. Venha logo. Enterro amanhã, às quatro horas”. Curta e grossa, a mensagem da mãe não tinha o menor sinal de dor, como se cumprisse um dever social como outro qualquer. A viuvez parecia um prêmio.

            O caminho entre a Capital e Santa Rita não passava de trezentos quilômetros, mas a agonia o prolongava a um deserto intransponível e poeirento. O percurso delineava uma paranóia: W parecia não ver terminada a película da vida que rodava em sua cabeça. Seu rosto vagava e invadia o horizonte com olhar perplexo.

            A cada lembrança, era o susto na descoberta do filho que poderia ter sido e não foi: a vida em si mesma mostrando o lado improvável, o que deixou de ser e que agora era irrecuperável. “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”. A música de Renato Russo guilhotinava sua consciência. O trajeto multiplicava-se ao influxo de migalhas de remorsos interiores.

             A imensa sala do sobrado (estaria cheia de gente velando o corpo do Seo Onofre?) não teria mais as tardes de crochê e conversas em que a mãe falava sozinha e o pai, sempre ausente, com seu silêncio e suas fugas psicológicas, fazia ouvidos moucos. As poucas lembranças do velho levam-no à sapataria, onde via uma bíblia sempre fechada na prateleira dos calçados reformados e o pai dando ordens e nenhum carinho. Só abria a boca para reclamar de W e nunca um agrado ou um aperto de mão (quando muito, um sorriso comercial); nunca um abraço a circular-lhe os ombros ou um beijo na face. Sempre uma distância e um olhar difuso, em que o pai parecia gravitar em outro mundo.

            A única companhia durante anos naquela infância insossa era a do papagaio do verdureiro Eusébio, que fugia do quintal lindeiro para a laranjeira perto do tanque dos fundos. Era lá que W conversava a perder horas com a pequena criaturinha, ensaiando-lhe pequenas melodias que ele depois repetia em alto e bom som. Esse papagaio parece uma maritaca, tira isso daqui, menino, me deixa em paz. 

A sua alegria estava fora de casa, longe da mãe apagada, do pai omisso. De Corina, a empregada autoritária, mesmo que de mau humor, ainda prestava-lhe alguma atenção. Da tia doente da cabeça, que só tinha seu pai pra cuidar. Do irmão que não quis saber de nada e vivia pelos cantos. Da mais velha que casou e foi viver em São Paulo com um argentino que diziam ser filho de um nazista fugitivo e que veio após a guerra para a América Latina.

O quintal da casa da tia Honorina, no outro lado da cidade, que ia até a beira do rio, de onde contemplava as canoas dos tiradores da areia, parecia dar-lhe lições de despedida. Lá ele gostava de ficar, nas raras vezes em que a mãe ia visitar a irmã mais velha.  Partir estava dentro dele. Coração partido, corpo apartado, muitas vezes sentiu vontade de mergulhar no rio Pomba e deixar que as águas o levassem leito abaixo: Aracaty, Vista Alegre, Santo Antônio de Pádua, São Fidélis... o Atlântico. A imensidão o atraía e preferia perder-se no mar continental a viver enclausurado e ocioso nos contrafortes de sua casa. Era a oportunidade de fazer o que queria, como naquela manhã de 17 de dezembro de 1977, já adolescente e leitor compulsivo, quando sonhou ir ao Père Lachaise para visitar o túmulo de Baudelaire, mas teve que se contentar em acompanhar o amigo depressivo ao cemitério de Leopoldina, onde se sentaram na lápide de Augusto dos Anjos e declamaram poemas. Paris parecia longe. Mas, se hoje mergulhasse naquelas águas no fim do quintal sem as amoreiras de antigamente (ah, nem o quintal era o mesmo: sem o chiqueiro, a casinha do Rex, os varais em que Zenaide, todas as tardes pendurava as roupas para quarar, o canteiro de cebolinhas, onde urinava com preguiça de ir até o banheiro, os pedaços de pneu velho em que a mãe plantava rosas miúdas, o mofo e as heras cobrindo os muros...), ainda seria a hora,  poderia pelo menos duelar com seu destino imposto e sair de braçadas contra ele.

            O cortejo já estava chegando à Ponte Velha, quando W desceu do ônibus perto do Clube do Remo. A maleta com poucos pertences parecia vacilar em suas mãos trêmulas, ele estacado ali, olhando como um estranho, e não sendo visto, o séqüito passando silencioso, aquelas cabeças sob guarda-chuvas solenes protegendo-se do sol da tarde tórrida. O som dos passos entreverados dos acompanhantes parecia impingir-lhe uma melodia surda. A sensação de impotência caminha com ele no breve e angustiante trajeto entre a calçada e o centro da rua, onde o caixão avança em marcha fúnebre, conduzido por umas pessoas desconhecidas. (W tinha ojeriza a papa-defuntos, necrológios, panegíricos, encomendas religiosas, missas de réquiens, orações à beira do túmulo). Ainda não tinha sido reconhecido. A mãe enlutada, enfeixada por uma roupa escura, apertava o lenço contra o nariz, limpava os olhos que marejavam debaixo do véu. Contemplava, de braços dados com a empregada de três décadas, o carrinho da funerária com seus pneus que dançavam sobre os paralelepípedos. Não tinha visto o filho. Decerto, em seus pensamentos, amargava a possível ausência. Enquanto isso, cenas turbilhonavam em sua cabeça que procurava alcançar sobre as outras um ponto de fuga. Lembrou-se das poucas vezes em que ele e o pai foram juntos à matinê no Cine Machado assistir às incontáveis reprises de Peter Pan e Mazaroppi, seu primeiros e inesquecíveis filmes. Depois, o carrinho de pipoca numa das pontas da praça, a volta para a casa, descendo a rua da Estação até a fábrica velha, depois subindo a rua do Senai até o fim e no meio do caminho o jogar piço-piço com o Vasquinho da dona Euterpina. Não se recorda de nada mais ameno, porque, fora isso, eram as ranhetices de dona Aurora, as cobranças de seu pai, a proibição de brincar com o vizinho (filho da Leninha, a desquitada). Cuidado, que a mãe dele não é boa bisca, o que vão falar da gente? cansou de ouvir. Não, não queria ficar se remoendo, mas, inevitavelmente, as lembranças vinham, resistentes, apesar de tudo, como se algo tivesse detonado os arquivos secretos de tantas coisas esmiuçando-se de forma desagradável num momento daqueles.

Quando o acompanhamento estava subindo o morro da Industrial, W foi notado, entre frieza e distância. Primeiro, a descrença, a palidez, a muda troca de olhares entre parentes e circunstantes. Tristes e desérticas, as pessoas diziam palavras convencionais. Depois, o abraço em soluços da mãe, sob as vistas ressabiadas dos mais próximos. Não disseram nada, apenas os mútuos braços inermes que se envolviam, no último adeus a quem chega ao seu momento, sem que nele despertassem outras sensações, senão a óbvia tristeza da partida, da perda e nenhuma outra menor comoção. Dever cristão – era isso o que sentiam mãe, filho, empregada, e o irmão, sempre alienado e ainda sem esboçar uma mínima crispação na face.

            Diante da via estreita que divide a longa esplanada de sepulcros, um quadro de geométricas solidões. Seus olhos abismam por aquela realidade que nos espera um dia, além das frivolidades da alma, das lutas insondáveis do espírito. O choro não vem, a angústia encalacrada, o movimento lento de sua cabeça contorna em derredor da campa, onde dois coveiros entrelaçam as correntes para descer o esquife, entre movimentos das mãos para expulsar as moscas e o cheiro de cravo de defunto. Hora derradeira. De crepúsculo selvagem. De solidão e inércia da carne morta e agora encubada numa gaveta fria e numérica. De perguntas não respondidas. De nós não desatados. Do perdão que nunca foi construído. A vida nada diferente dela mesma, pensou.

Alguém fuma um cigarro, enquanto o caixão desce esbarrando nas laterais e pequenos tufos de terra vão sujando a tampa, que não foi aberta para as últimas despedidas. Ao ver a fumaça circunavegar sobre as cabeças paralisadas no último ato, ele imagina a vida se evolar sem deixar vestígios.  Aos poucos, as pás de terra e cal vão se misturando às flores quase murchas atiradas na cova. Lembra-se da única vez em que em o pai o abraçou na vida: quando o irmão caçula foi enterrado naquela mesma sepultura, depois de ter sido esmagado pelo caminhão de areia do Agenor, que adentrou o portão da obra enquanto ele, em meio aos tapumes, vergalhões e restos de concreto, brincava de engenheiro e  construía uma cordilheira com tampinhas de refrigerantes, quando ainda moravam na pracinha do Rosário, numa casa cuja construção se interrompeu para sempre, solitário esqueleto na praça difusa a lembrar um dia que ninguém esquece.

Até hoje a mancha de sangue no cimento é uma marca que não se diluiu. Dói-lhe com uma angústia crescente, redundante, a inscrever-lhe uma culpa irremediável. Foi ele quem mandou Serginho ir brincar nos fundos, para não incomodar a mãe que preparava o almoço para os peões.

 

 

 

Ronaldo Cagiano nasceu em Cataguases, viveu em Brasilia e São Paulo (Brasil) e mora atualmente em Lisboa. É autor, dentre outros, de “Dezembro indigesto” (Contos, Prêmio Brasilia de Literatura 2001), “O sol nas feridas” (Poesia, 2012) e “Eles não moram mais aqui” (Contos, Prêmio Jabuti 2016).

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