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O Aleph tatuado
Marcos Peres

A literatura é um caminho feito de acasos, de veredas que se bifurcam, de eleições e de preferências. Meu caminho é curioso e improvável, vendo agora, com o vetor oposto. Li, na infância, um gibi da Disney que parodiava Umberto Eco. Tio Patinhas, já na adolescência, veio-me à memória tal qual a Madeleine de Proust, e foi determinante para que eu escolhesse, entre um rol de livros sobre os Cavaleiros Templários, um tal Pêndulo de Foucault. Por sua vez, o mestre italiano foi o grande responsável por me dizer de um argentino que fazia maravilha e condensava universos em porões. 

 

Então vi o Aleph. E, na literatura de Borges, vi o mundo.

 

Anos mais tarde, já admirador e conhecedor do vasto universo borgiano, decidi usar o conto Três versões de Judas como argumento para um romance que satirizasse teorias conspiratórias. Assim nasceu O Evangelho segundo Hitler, uma brincadeira que não tinha intenção maior do que ser lida por dois ou três amigos, também admiradores da mesma fonte. 

 

Utilizei Borges como protagonista porque queria homenageá-lo. E, para realizar tal homenagem, coloquei-o em uma figura fronteiriça a da infâmia (da mesma maneira que Eco fez ao escrever o cego e torpe Jorge de Burgos, em seu Nome da Rosa). Ao criar uma interpretação equivocada de Três versões de Judas, uni um conto poderoso ao seio daquilo que viria a ser denominado como nazismo. 

 

O procedimento não veio ao acaso: eu tinha em mente, claro, as interpretações desregradas e fantasiosas de O Pêndulo de Foucault, além de um certo incomodo com o tamanho frisson dado, à época, ao Código Da Vinci, de Dan Brown. Três versões de Judas era (e é) potencialmente mais letal como literatura e como teoria; no significante e no significado, as poucas páginas que tratavam de versões alternativas de Judas Iscariotes, no conto de Ficções, tratavam-se de algo muito mais provocador e lesivo do que as bobagens de Jesus e Maria Madalena de O Código Da Vinci. Assim, tive a ideia de criar uma teoria conspiratória para brincar com as teorias conspiratórias. Assim tive a ideia de usar Jorge Luis Borges não apenas como declarada fonte, mas também como personagem.  

 

Ao unir em duas pontas um dos maiores escritores argentinos de todos os tempos e o nazismo, sabia dos perigos que estava correndo. Mas em nenhum momento hesitei de que o texto era, em seu todo, apenas uma homenagem. Um procedimento que, se pudesse ser lido, talvez ocasionasse um sorriso no autor de Pierre Menard, autor do Quixote. E, afinal, eu sabia, não seria lido por mais que 3 pessoas... 

 

Por um destes rompantes indecifráveis da sorte, o livro venceu um concurso para inéditos (Prêmio Sesc de Literatura), um prêmio para romancistas iniciantes (Prêmio São Paulo) e foi finalista do Jabuti, o mais conceituado galardão literário do Brasil. A solitária homenagem deixou de ser solitária, desembarcou em Portugal, Espanha e, acredito, logo começará seu curso na América Latina. Na Espanha, conheci Rachel Uziel, tradutora e antiga professora de hebraico de Borges, e lhe mostrei orgulhoso um Aleph que tatuei em meu braço. Porque a tatuagem?, ela me perguntou, espantada, Respondi que pretendo imprimir em meu corpo um símbolo para cada livro lançado. E que, no caso de um livro em que Borges é protagonista, nada mais justo do que tatuar um Aleph.  

 

Borges está comigo. 

 

E não está só. 

 

Como dito, meu percurso literário é um pouco incerto: Conheci Borges por patos animados, cavaleiros templários e um guia de luxo chamado Umberto Eco. Também não deixa de ser curioso que um fervoroso jovem de 17 anos se apaixonasse pelo enciclopédico Borges. E que o apaixonado Cortázar adentrasse na vida deste leitor décadas mais tarde, já na maturidade. 

 

Com 30 e poucos anos, já com cabelos brancos, perdi a conta das vezes em que, em uma tarde, cruzei a pont des arts escutando as músicas da Rayuela e me perguntando se encontraria a Maga? Volta em cena aqui o leitor agradecido: da mesma maneira que vi um Aleph na Rua Garay, reencontrei e perdi Maga no labirinto das linhas deste outro mestre argentino. Reencontrei-me como leitor – um ser feito inteiramente de admiração, sem fronteiras, sem rivalidades, sem nada. 

 

Por que Borges? Por que Borges e não Machado? Ou Jorge Amado? A literatura não é como uma cancha de futebol. Eleger Borges como protagonista não tem o simplismo imediatista da eleição de um time como o Boca Juniors seja campeão da Copa Libertadores da América em pleno Maracanã ou de Messi e Neymar disputarem a eleição de melhor jogador do mundo. 

 

Ainda bem, penso, ao olhar minha cabeceira e ver tantos heróis, de tantas nacionalidades e razões distintas. Ainda bem, penso, já com um assomo de preocupação, sabendo que, se for agradecer com romances todos esses cânones, um corpo não será suficiente para a quantidade de tatuagens que terei de fazer.

 

 

 

 

Marcos Peres nasceu em Maringá. É bacharel em direito e atualmente trabalha no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Por sua estreia, O evangelho segundo Hitler (Record 2013), recebeu o prêmio SESC de Literatura de 2012/2013 e o Prêmio São Paulo de Literatura em 2014, sendo também finalista do Prêmio Jabuti 2014. Que fim levou Juliana Klein?, seu novo livro, um romance policial, foi lançado em julho de 2015, também pela editora Record.

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