QUATRO POEMAS
DE ANA MARIA RODRIGUES OLIVEIRA
poesia do Portugal
As mulheres da minha vida
As mulheres da minha vida vestiram-se de negro
Procuraram conforto nos campos onde as oliveiras e os sobreiros brotavam
Como se traçassem um acordo de luz sobre as planícies ibéricas
Onde os caprinos saltitavam por entre pedras canchos e ribeiros
Sustentando os sonhos mantendo-os iluminados na sua mente e inteiros
O negro acalenta a morte dos filhos
Em tragédias encenadas nos caprichos dos deuses
Onde os soterramentos e envenenamentos espreitam sádicos
As crias jovens afoitas à tempestade e aos truques ratoeiras dos mágicos
O cajado em punho pela domadora de grunhidos
Equilibrista dançarina entre desertos barrancos
Amante das flores selvagens dos trigais concubinos
E das viçosas pastagens que escondiam misteriosos entroncamentos
As mulheres da minha vida silenciaram a violação o corte a cisão
A invasão das entranhas e defrontaram um mundo sem lei nem sustentação
Abafaram a magra comida a pobre refeição
Calaram a voz mas não alma
Porque a sinto em mim mesma até na noite mais calma
Cerraram os dentes perante a traição
Mas determinadas acenderam as lareiras mesmo sangrando do coração
As mulheres da minha vida amaram sem peias morreram solteiras
Encenaram um palco de risos e roseiras
E levaram consigo a paixão pela vida a admiração da estrela mais longínqua
E dançaram em delírios de entrega à vida e alegria
Contra palcos de sanfonas em sapateados de chinelos velhos estridentes
Perante a frieza cortante dos deuses indiferentes
As mulheres da minha vida ergueram pás deram serventia a pedreiros
Construíram muros e telhados
Derrubaram muralhas de pedra pavimentaram o chão mesmo em tempos malfadados
Acalento em mim todas as mulheres da minha vida
Quando abraço cada árvore do bosque e encosto o meu corpo
Aos menires de outrora nos lugares sagrados da terra
Quando nado nas águas calmas dos lagos e dos rios
Quando enalteço e amo os animais na cavalgada da existência
Quando a mente se acerca do corruptível com que nos embrulhamos
E os elementos naturais se transformam em bens essenciais
Ou em mantos negros com que nos transformamos em seres irreais
Guardo em mim a revolta que não pode nem deve silenciar o estuprar
Os atentados à vida feminina e as traições
A luta pela subsistência a infâmia dos políticos roubando o que é de todos
Ignorando e maltratando as famílias por ganâncias e corrupções
O meu corpo e espírito dançam cada vez que a vontade me puxa
Para a ondulação das águas dos abismos das fráguas
Até que o corpo capitule e se ausente deste mundo e morrer
Para noutros cenários laivos de mim possam renascer
Sinto colada a mim a liberdade de amar
Por entre o entusiasmo da construção de beirais onde as andorinhas edificam os ninhos
Apanho o voo delicado e estonteante dos flamingos para outras paragens outras geografias novas aragens
O meu coração plana até aos confins da galáxia para lá da lua amante
Do sistema solar salto abandonando os lamentos saudosistas e a intriga delirante
Assombramento
Escavo sulcos na própria pele por entre rasgos que se dão à luz das criaturas virais
Quando em ansiedade mutilo as unhas e olho embasbacada para as palmas das mãos
Tentando encontrar no seu traçado a linguagem dos tesouros escondidos
Mapas de ligação a tornados e veredas que apontam para campos de lírios ancestrais
Mas o lodo entra em efusão e borbulha na caverna austera
Lugar dissolvido nas visões dos répteis guardadores de rebanhos cósmicos
Suspensos em cordas de tensões elásticas
Enrolando-se em piruetas gigantes que sopram em gozo sublime
Expandindo e encolhendo bolas de sabão criadoras de mundos pontes em ligação
Enlaçando as moléculas e as viroses em constantes adaptações
No revelar espinhoso das manobras das contradições
Entroncamentos que me guiam os passos por entre terrenos minados
Onde os parasitas esposam as posturas por inteiro
E descubro no recanto a ponte de pedra por onde a menina saltita a caminho da escola
E as diabruras por entre risotas atravessando o ribeiro
De nada tenho saudade neste respirar pesado
Nem dos tombos nem das feridas nem das precocidades
Da criança que rodopia sem preconceitos na descoberta da mata por explorar
Nem das neuras nem dos choros nem das fantasias
Nem das danças nem das melodias
Nem da perceção da distância nem das dificuldades de adultos
Contaminando vapores sombreados nas nuvens densas
Nem dos tijolos nem das vigas nem das pás nem do cimento
Nem do frio cortando os dedos nas manhãs geladas
Por caminhos de terra batida húmida enlameada aqui e além
E assim perco-me e encontro-me nos trilhos e no questionamento
E na modorra abandonada dos sem vintém
O confrontar do perfeito paradoxo de alguém que desfez o corpo
Construindo uma casa e casa não tem!
Agito-me em fermentação nos túneis e reentrâncias da revelação
Onde brotam incontrolados os fungos e germinam flores negras
As redes de sustentação servem de balancé às cópulas gigantescas
Das galáxias onde me embrulho em deflagração iminente
Enquanto os drenos trabalham incansáveis na sugação dos dejetos
aspirando o pó das estrelas
Provocando os fluídos delirantes de um dinamismo eternamente presente
Conforto patológico
Há um conforto patológico no dinheiro
Quando passamos a estar ao serviço deste excremento
Em lugar de o utilizarmos como adubo
Nas hortas suspensas dos nossos sonhos
Pastando em terrenos contaminados a sensação de segurança obtida
Pela riqueza acumulada no entesoirar dos bens
Fruta apodrecida em esconderijo pela esperteza saloia consentida
É uma energia subtil de raiva e ódio
A que adquirimos na ilusão de controlo
Neste chumaço humano de poder e capital
Criando ranço nos tachos vazios de conteúdos
Apenas o vácuo de palração artificial
De quem escava galerias adormecidas
No tilintar monótono das moedas
A consolação enferma do perfilhar dos cofres
Guardadores de códigos e joias
Encerra a esquizofrenia dos milionários
Que assomam dentaduras artificiais perfeitas
Imitando o paranoico perfecionismo
Na simetria dos bastardos
Agitando a luxúria mórbida no consumo apocalíptico de bens materiais
Como se com eles comprássemos a eternidade
E mesmo alcançando-a para que a quereríamos?
Seria o suplício perpétuo numa amolação vergonhosa
A preguiça sem sumo no desaprender lento do riso
O construir de fortificações suspensas nas costadas da ciência
Manipuladora de vírus e bactérias
Robóticas e translúcidas prisões em forma de esferas
Chapéus de chuva ao vento
O trevo de quatro folhas voou sobre as cabeças molhadas dos pedestres
Em vagares de ócio depois da canseira do labor sem sentido
Remunerado como passatempo inacabado floreado e garrido
Aguarda-se o desanuviamento pardacento e a evaporação das pingas
Num pavimento incerto entre passadas femininas evitando os charcos em duvidoso corrimento
As vozes sábias confundem-se com a gesticulação das mãos denunciando o grito lamento
No brado adivinham-se parques de diversão mesmo sem melodia
Enrolando-se as línguas confusas e doridas no som embaraçante do vento
O trevo de quatro folhas não trouxe consigo a sorte
Não impediu os complexos de culpa
E não evitou o contratempo da morte
Sucumbiu às crenças dos homens sobre o firmamento
Apodreceu por entre neurónios de entusiasmo frenético
De quem faz um filho com a força do bélico
E desfaz a individualidade em proveito da universalidade do ligamento
Ah os chapéus de chuva ao vento!
São pronúncio de miscelânea consternada
Resvalamento incoerente homicida repelente
Virose camaleónica
Chave de entrada para o nada
Pura visão viscosa
As roupas encharcadas moldadas aos corpos
Trespassam a pele encarquilhada
Desfazendo-se nas utopias sem sol em angústia gelada
Os pés calejados sangram a cada escorregadela
No reflexo abaulado do asfalto mal-amanhado
E o meu olhar desejando dar o salto para lá para cá
E num deslize camuflado
Transformar-me de ser vivo em conflito
Para em breves instantes flutuar como um ser suspenso alado
Ana Maria Rodrigues Oliveira nasceu a 17 de Fevereiro de 1960, em Portugal, no Alto Alentejo no distrito de Portalegre e concelho de Castelo de Vide.
Antes de completar um ano de idade veio com os pais viver para a zona de Cascais e aí tem vivido desde então.
Em 1986 finalizou a licenciatura em Filosofia na Faculdade de Ciências sociais e humanas de Lisboa. Licenciatura que lhe permitiu dar aulas de filosofia durante alguns anos.
Edita o seu primeiro livro de poesia em 2008 através da Corpos Editora “Grito de liberdade”. Este livro é uma forma de partilhar emoções e vivências, encarando a poesia como uma catarse. Dedica este livro a todas as mulheres, pela luta e determinação com que enfrentam as adversidades de uma sociedade que ainda manipula e escraviza.
Ainda no mesmo ano participa em duas coletâneas: Uma de Prosa e Poesia “A arte pela escrita” da editora Escritartes e a outra, “Poemas sem fronteiras” “Ora, vejamos…2008” Editora LULU de Leiria que faz uma recolha impressionante da poesia contemporânea. Nesta última Ana Maria Oliveira obtém o prémio da Menção honrosa com o seu poema “Farsa”.