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ESCRITORA EM OFÍCIO, MULHER EM DESCARGO:
a travessia de um ornamento ao devir de um sujeito
por Bruna Morsch*

Seguindo uma vida suposta de um controle ilusório, caí nas tentações de perdê-lo e, justamente no caos das minhas contradições, tornei-me mulher e, como um acidente, renasci em território literário. A proposta à produção deste texto, sugerida pelo editor, me surgiu de uma forma tão sutil que me iludiu. Soou tão fácil, contudo, deparei-me com horas frente a um cursor piscando em uma página em branco. Falar deste processo é tão desafiador justamente porque, ainda, dos meus devires, não se trata de palavras que consigam descrever o meu tornar-se mulher - atravessada pela autoria de uma obra literária produzida por mim, por mais que seja, de fato, isto que tenha culminado na mulher que eu sou hoje. Eis, aqui, pois, um ensaio, uma reflexão, sobre a escassez que o simbólico deflagra nas nossas vidas quando, no meu caso, tudo o que se perseguiu entre as peripécias do meu inconsciente foi um corpo, e não um livro.

Falemos, inicialmente, de um eu artista. Por 23 anos caminhei na certeza de um corpo errante que carregava uma alma que pedia por algo. Leitora nada assídua, não sei por que cargas d’água decidi escrever. Talvez as contradições caminhem comigo pelo resto da minha vida. Afinal, o início da minha vida nas artes surgiu pelo desenho. Sempre desenhei mulheres de todos os tipos, pois, afinal, era aquilo que me instigava o ser. Eu, muito inocente daquilo que o meu coração pedia, pensei que as artes bastariam para sustentar a minha feminilidade.  Parti para a escrita e, repito, não sei por quê! Talvez a psicanálise nos dê notícias adiante. Sem referenciais literários senão os cinematográficos e as histórias em quadrinhos, apelei ao estilo Noir, aos 14 anos. Enjoei-me. Escrevi outro. Depois, mais um; e mais outro... Todos, até hoje colecionando bolores na gaveta. Declarei-me amadora. Parti para as crônicas.

Neste momento da minha vida, eu estava desesperada. Recém-formada, sem motivação nenhuma para abrir um consultório, sem aparecer nas ruas, transando à toa, fumando duas carteiras de cigarro por dia, deparei-me com a falta de sentido para viver. Não eram mais os desenhos, os livros, os cigarros, o sexo, o diploma, nada, nada mais bastava. Prestes a dar boas-vindas à morte, eis à urgência de um imperativo, uma crônica solta, Van Ella. Vá nela. Fui nela. Sou, hoje, ela.

Tudo começou com uma leve revolta. “Chega de fantasiar entre narrativas em lugares sonhados que eu nunca fui.”, pensei e, de um estilo Noir, em Las Vegas, pulei para Ilha das Viúvas, num estilo gritante - feito o sangue que Tarantino derramou nas grandes telas – universo este que eu mesma criei. Primeiro surgiram ideias bobas, de histórias em crônicas vazias, narrando sujeitos que pouco me concerniam até que os termos baunilha e limão me incitaram a vontade de articular doçura e acidez numa personagem que chutava o útero simbólico, querendo nascer. Baunilha, vanilla, Van Ella, limão, Citron. “Essa mulher doce mulher de vida ácida merece um livro.”, decretei. E, assim, comecei um trajeto que me atravessou a ponto de me transformar da forma que eu sempre quis, mas nunca esperei que fosse assim - ser escritora como um argumento a ser mulher.

A partir daí, mesmo sem referenciais literários, eu tinha uma bagagem que dei o direito à legitimação: jornada de anos de análise, deitada no divã, a estética sem palavras e os meus amados Freud e Lacan para me dizerem de um não sentido de viver e, por fim, o que fazer diante disso. Relembrando os meus desenhos de adolescência enquanto inspirações iniciais diante dos corpos estéticos, Van Ella me apareceu como um ensaio, a priori, de um corpo e, a posteriori, um ideal a ser seguido por um discurso. Parece-me que Van Ella é o conjunto de palavras que contornam um desenho, uma cena, uma estética que leva o leitor a imaginar certeiramente do que se trata a imagem da cena. E, partindo do princípio de um corpo, nada tem a ser dito dele senão o banho de linguagem que damos ao mesmo. Portanto, um corpo é dado o nome a partir do simbólico. Caso contrário, temos somente um corpo reduzido a mais um pedaço de carne.[1]

Assim sendo, Van Ella me salvou de um desejo de desligamento do meu corpo para me dar ordens da possibilidade de um devir mulher banhada por novas palavras que não aquelas que fadaram a mim. Cada palavra escrita na narrativa era como um mergulho na pele que eu queria sentir em mim. Era dar contorno a um corpo ainda não feito, como um desenho que eu costumava fazer na minha adolescência, contudo, desta vez, em palavras. Produzir um novo corpo era – e é - de fato dizer! Dizer que é possível a existência de um corpo carregado de desejo e gozo a ser desejante e gozante, desejado e gozado. Produzir um corpo em palavras foi, portanto, dar sentido àquilo que pouco parecia fazê-lo.[2] Inclusive, até hoje, considero um desafio sobre o que de fato decretar diante da reciprocidade entre a minha pele e Van Ella: se Van Ella discursou um corpo, ou se um corpo discursou Van Ella.

E, pensando em psicanálise, desejo e gozo, proponho uma problemática que nos concerne em plena humanidade: do que gozamos? E o que desejamos? Somos postos sob a cobrança de decidirmos o que queremos ser quando crescer em tenra idade e, assim optamos por aquilo que nos propõem os vestibulares, as faculdades e, até mesmo o lugar físico (aonde vamos?). Ser escritora nunca passou de um hobbie e tornar-se psicanalista pouco se tratou de uma profissional cogitada no discurso social enquanto uma prestadora de serviços. Fiz a faculdade por um desejo de saber como gozar do meu ser e dos seres e tornei-me escritora legitimada por acidente, justamente porque, em sã consciência, não cogitei. Assim sendo, as fichas começaram a cair de que os lugares sociais que propusemos a nós mesmos não passam de uma roupagem que esconde a nudez da modalidade dos nossos gozos e dos nossos desejos – chamar a beleza, o gosto e a dor do ser de ‘profissão’ é redutível demais!

Portanto, digo aqui que, como muitas de nós mulheres, divididas entre as putas e as santas, tornei-me escritora para gozar de auditórios cheios e dizer de um desamparo de um corpo que nunca fora me dado, para ser reconhecida pelo ofício de uma mulher, de antemão, de um respeito, justamente porque dominou o lugar da puta pela via de uma escrita em estética. Chico Buarque não está nada longe do reconhecimento da feminilidade em dizer: “se deitou na minha cama, e me chama de mulher.”, porque, hoje, nem todos se deitam na minha cama! Mas, fi-los chamarem-me de mulher.

Concluo aqui que ser escritora e, mais especificamente, ser escritora/autora de Van Ella Citron é a condensação da minha alma a partir de um ornamento – um agalma - que me veste um ser escritora, de modo a aparecer aos olhos alheios sob o reconhecimento da minha feminilidade pela via do respeito, sem deixar de dizer de uma liberdade sexual e de gênero, na tentativa de desconstruir tabus nas sutilezas de uma putaria que está escrita e inscrita em todos os sujeitos, e não somente a quem está na margem. Criei um sujeito sem pele encarnada que mandasse notícias de uma voz nunca escutada aos sujeitos por quem me disponho a curiosiar por paixão de ser humana, por paixão de querer transitar entre olhares, entre peles, entre corpos falantes e ultrapassar a via da fantasia alheia no que tange ser uma mulher como eu.

 A inserção no terreno literário tratou-se de tornar-se mulher com uma chave de ouro que me fez sentir a leveza de uma transformação – um livro que abriu as portas para que eu pisasse em solo firme e fazer chamarem-me de mulher pela ordem de um lugar cuja legitimação eu conquistei. Assim sendo, fora de tudo e de todos, até mesmo fora de si e do controle, Van Ella me vestiu de profissões para dizer de uma subjetividade e me atravessou como um acidente pela via da sabotagem do meu próprio inconsciente e salvou um corpo à vida, escreveu uma história e inscreveu uma mulher em mim.

 

*Bruna Sofia Morsch é joinvilense, 24 anos e autora do primeiro romance "Van Ella Citron", classificado entre os 10 melhores do ano (2017) pela revista São Paulo Review. Também é professora de inglês e atuante na clínica de psicologia de abordagem psicanalítica. Já lançou o livro em Joinville, Jaraguá do Sul, Curitiba e Balneário Camboriú.

 

Notas:

[1]              Indico  leitura do conceito do corpo e a relação com o real, em Freud e Lacan, bem como a produção do simbólico e imaginário na relação entre o sujeito e o corpo

[2]              Indico aqui a leitura do conceito de performatividade em Judith Butler

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