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FUNNY VIBE

por Carlos Eduardo Pereira*

               Outro dia eu estava na Livraria da Travessa, em Botafogo, acompanhando o lançamento de “A visita de João Gilberto aos Novos Baianos”, do Sérgio Rodrigues. Logo ao meu lado, na fila do autógrafo, percebi o Romanholli, músico, baixista dos Picassos Falsos. Sempre evito isso de ficar tietando as pessoas que admiro e, por acaso, dão o azar de cair do meu lado numa fila de autógrafos, mas dessa vez puxei assunto. Falei da minha gratidão por tudo que essa banda fez por mim, da maravilha que é o “Supercarioca”, esse álbum que marcou profundamente a minha adolescência, falei que tinha rolado uns dias antes um show do Living Colour, no Circo Voador. (Não sei por que falei do Living Colour, essa outra banda que também teve um papel importante na minha juventude.) O Romanholli foi muito gentil, agradeceu pelo meu entusiasmo, disse que também curte os Colours, que inclusive estava nesse show que eu mencionei, parte da turnê em comemoração aos trinta anos de lançamento do “Vivid”, disco de estreia dos caras. Perguntou se eu me liguei que eles tocaram “Funny Vibe”. Eu não tinha me ligado. Claro que a “Cult of Personality”, claro que também a “Glamour Boys”, mas não a “Funny Vibe”. Cheguei em casa e fui logo conferir essa faixa. O vídeo mostra o desconforto de uma moça no elevador quando entra um negro, os olhares das pessoas quando passa um negro por elas numa festa. A letra fala algo como: não, eu não vou te roubar, eu não vou te bater, nem te estuprar.

Na mesma hora, me lembrei de “O vendido”, romance de Paul Beatty, publicado no Brasil pela editora Todavia. Começa assim: Pode ser difícil de acreditar vindo de um negro, mas eu nunca roubei nada. O Paul Beatty é negro. E parece que ele tem que falar muitas vezes sobre como se sente sendo um autor negro, escrevendo sobre ser negro na sociedade atual. Eu não sei de que jeito ele responde a esse tipo de questão, mas seu livro se sai muito bem. “O vendido” fala de racismo de forma direta, uma abordagem criativa que coloca a gente num lugar desconfortável, no nosso lugar. E quando digo uma abordagem criativa, estou dizendo que ela escapa inteligentemente de uma militância comum, que ela apresenta uma possibilidade para essas nossas lutas identitárias de todos os dias. E tudo isso utilizando o humor. Um engraçado meio torto que acaba nos fazendo pensar. O narrador desse romance ri da nossa falta de jeito.

Recentemente eu estive nos Estados Unidos, como convidado a participar da Primavera Literária Brasileira, e encontrei numa livraria em Chicago um outro trabalho do Beatty, o “The White Boy Shuffle”. Comprei o livro (apesar do meu inglês ruim), e talvez tenha sido porque logo de cara, numa das informações de quarta capa, li que se trata de um texto contundente e hilariante, um romance dolorosamente engraçado. Para mim, fez sentido.

Dentro da programação da Primavera, houve uma roda de leituras com jovens estudantes de vários países de língua espanhola, na Northwestern University. Pude trazer comigo dois livros (apesar do meu espanhol ruim): “Celebraciones”, do colombiano Leonardo Gil Gómez, e “Para restarse”, do poeta porto-riquenho Iván Pérez-Zaias. E, com esses encontros, tive a oportunidade de aprender um pouco mais sobre as possibilidades da representatividade na literatura. Ou melhor, com esses encontros tive renovada a minha crença no poder que a literatura e outras manifestações artísticas têm para nos fazer exercitar a empatia. (É possível que eu precise estar frequentemente revendo a minha visão sobre o papel da literatura, e de outras formas de arte, nessa nossa luta pela representatividade.) Ou melhor ainda, e aqui seria muito bom se eu soubesse falar da maneira como fala o narrador de “O vendido”, algo como por que culpar Mark Twain [por conteúdo racista em seus livros] por você não ter coragem e paciência para explicar a seus netos que a palavra ‘crioulo’ [nigger] existe e que durante a vida superprotegida deles é possível que algum dia sejam chamados de ‘crioulos’ ou, pior ainda, que se dignem a chamar alguém assim? Ninguém vai se referir a eles como ‘pequenos eufemismos negros’, portanto bem-vindo ao léxico americano – crioulo!

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*Carlos Eduardo Pereira nasceu no Rio de Janeiro, em 1973. Cursou História, na UFRJ, e Letras, na PUC-Rio. É autor do romance “Enquanto os dentes” (Todavia, 2017), semifinalista do Prêmio Oceanos e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.

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