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O ETERNO EXPRESSO

*Eugenia Zerbini

Tra un fiore colto e l´altro donato

l´inesprimibile nulla

 

G. Ungaretti

 

 

Ao descer do táxi, avistei-a do outro lado da calçada. Sentada no café, cigarro aceso numa das mãos.

- Professora -, disse me aproximando.

- Que pontual! Gentileza com que os entrevistadores brindam os velhos entrevistados: eles podem morrer de repente -, respondeu, sorrindo.

- Longe disso, Professora -, falei baixo e me sentei. - O cigarro pode representar um atalho para esse fim.

- Dois ao dia -, esclareceu, piscando o olho esquerdo, gesto coquete numa mulher de 85 anos.

A jornalista queria começar sua tarefa, uma coletânea de depoimentos de juristas sobre as mudanças trazidas pelo novo Código. Para seu espanto, a Professora respondeu não ser a pessoa mais indicada, uma vez que fora um dos autores do Código que se modificava.

- Uma espécie de ciúme do criador às voltas com sua criatura. Digo sem embaraço porque, cedo na vida, fui acusada de ser uma mulher sem ciúmes. Entende? Como se eu não possuísse sentimentos. Ao contrário, amei e muito. Se você conversar sobre mim com meus colegas antigos, descobrirá que tive um grande amor. Ele também era professor de Direito. Já se foi.

- Retornando ao novo Código –, na tentativa de reassumir o foco do encontro... Minha entrevistada divagava.

- Nasci em Nápoles e vim para o Brasil em 1944. Meu pai fez parte do governo de Mussolini. Com receio dos bombardeios, tirou a família da Itália. Fomos para Lisboa. Pouco depois, papai nos mandou para o Brasil. Embarcamos num navio português, você se lembra da neutralidade de Portugal no conflito, não é mesmo? Outros conhecidos tinham feito o mesmo.

- Professora, posso adivinhar sua trajetória a partir de então. Sua adaptação rápida, o ingresso na faculdade de Direito. Contam que o examinador em Latim sugeriu que a senhora o examinasse.

- Um exagero, exagero puro... mas é verdade que eu era fluente em Latim e Grego antigo. Nápoles foi fundada sobre o túmulo de Partenope, a sereia que se matou quando Ulisses ignorou seu canto. Porém, nem tudo foram encantos. Não é que o Brasil havia entrado na guerra, antes de nossa chegada? Uma complicação. Mas sobrevivemos -, ela concluiu, acendendo um novo cigarro.

- Sua carreira, Professora, foi coroada pela autoria do antigo Código.

- Nada disso agora tem importância. O fabuloso em minha vida foi conhecer o homem por quem me apaixonei. No ano seguinte à minha colação de grau, iniciei o pós graduação, onde estreitei a amizade com esse professor. Não foi amor à primeira vista. Ele era casado. Mesmo assim me cativou. Quem resistiria àquela inteligência e àquela voz, uma voz tonitruante, recitando versos de Ungaretti "com minha fome de lobo amaino meu corpo de carneiro"? Por sinal, Guiseppe Ungaretti acabara de passar uma temporada lecionando literatura italiana na Universidade de São Paulo, você deve saber. Eles haviam tornado-se amigos.

O controle da entrevista escorria-me pelas mãos.

- Essa leva de imigrantes italianos sabia mais do que assar uma boa pizza -, pontuou irônica a Professora.

A jornalista decidiu interromper a entrevistada. Afirmou que o relacionamento que mantivera com seu professor não devia ter sido bem visto na época.

- Nunca me atrapalhou. Prestei concurso e saí de casa. Não dei chance para meu irmão dizer nada (então o chefe da família, pois papai havia falecido). Eu e meu professor celebrávamos as festas de praxe antes ou depois da data. Perante a eternidade, ele sempre disse, não há tempo. Todo dia podia ser Natal.

Ela lançou para longe o resto do cigarro fumado até milímetros antes do filtro. Rápida, sacou outro da bolsa.

- Eu tinha espaço para meu trabalho e minha carreira. Quando me cansava, ia ao teatro, a concertos. Tinha colegas e alunos que me faziam companhia. Nunca me pesou o fato de aquele homem ser casado. Ele havia me entregado o coração.

- Professora, esse cigarro está fora de sua medida diária...

Ignorando a observação, ela explicou que aceitar sua condição de amante levou um dia esse homem a duvidar do seu amor. "Me diga, o que você sente por mim? Você está empenhando sua juventude, e eu não posso assumi-la como mulher", foram as palavras, segundo ela, que ele repetiu mais de uma vez durante a semana que passaram na Bahia, num daqueles congressos jurídicos que freqüentavam juntos. Ah!... Salvador, aquela "Roma morena", aprendeu com ele. "O que você quer de mim?".

- Foi nossa única discussão. Sem argumentos, levantei a voz: "Pois bem, eu quero um túmulo". Dias depois, recebi a documentação de um túmulo em meu nome. No cemitério São Paulo, numa esquina de quadra, com vista sobre o da família dele.

Passaram-se mais de duas horas e eu ouvindo aquela mulher. Para meu trabalho, tempo de pouca valia. Para o entendimento do que pode ser o amor, quase tudo.

 

 

“O eterno expresso” foi um dos contos vencedores do 1º Concurso de Contos Brasil-Itália, organizado pelo Comitato degli stranieri all'Estero de São Paulo,em 2016.

 

 

 

*Eugenia Zerbini conquistou o Prêmio Sesc de Literatura com seu romance de estreia "As netas da Ema" (Record, 2005). Seus contos foram reunidos na coletânea “Harém”, publicada pela Patuá (2016) e atualmente disponível na plataforma Kindle (Amazon). Publicou seu segundo romance em 2019, “Para você nunca se esquecer de mim” (Kindle/Amazon). Nasceu e vive na cidade de São Paulo (SP). Site: www.eugeniazerbini.com

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