ENTRE CLICHÊS E AUSÊNCIAS, O DRAMA LITERÁRIO NA POLÍTICA EM RUÍNAS
Sergio Leo
O bom escritor tem olhos e ouvidos (às vezes, também o nariz) atentos ao mundo real, aquele ainda intocado pela ferrugem das frases feitas; e só com instrumentos cirúrgicos o autor de qualidade se atreve a mexer com o clichê, o lugar comum, a morte da literatura, o antípoda da criação. Mas quem busca a realidade política de hoje como material de trabalho não tem remédio: vai sujar as mãos com fatos e personagens enredados em um monturo de chavões e estereótipos que parece assentado no mais rasteiro texto de propaganda política.
Na maior potência do planeta, do alto da torre onde observa a megalópole a seus pés, um magnata branco, bilionário insensível e truculento _ com uma capacidade linguística próxima a de uma marionete de circo vagabundo _ prejudica os pobres, defende os interesses dos ricos e, ao ver-se ameaçado, arranca aplausos disparando bombas sobre países de gente com pele escura. Um personagem egocêntrico e previsível, raso, unilinear, ladeado por uma esposa loura, bonita e oca e protofascistas como assessores: é o que temos para hoje, uma heresia em todos os manuais de escrita criativa.
No Brasil, o que dizer de um enredo que, em um de seus momentos-chave, faz aparecer subitamente uma gravação clandestina entre dois personagens preocupados, na qual apontam, como única solução para escapar da Justiça, um grande acordo para tirar de cena a principal personagem feminina, e seguem no diálogo mencionando todos os aliados e beneficiários da trama _ trama que, iremos ver nas páginas seguintes, desenrola-se exatamente como descrito nas palavras captadas pelo gravador? Recurso de escritor preguiçoso, inverossimilhança de autor acostumado a recorrer a deuses ex máquina para desatar os nós de suas histórias. Um anátema para os apreciadores de bons romances.
É idiotice cobrar dos autores nacionais, tão cedo, textos para competir com a novela transmitida, dia a dia, no noticiário nacional (interrompida, em pausas tragicômicas, por esquemáticos enredos paralelos vindos do exterior). De clichês em clichês, o desmoronamento das estruturas montadas em décadas de política no Brasil ainda levanta muita poeira e escombros; o desastre pede calma a quem tenha a pretensão de interpretar esse inferno.
A literatura brasileira, enquanto espera, tem material de primeira qualidade a explorar ainda, na vida nacional. É bem verdade que, com frequência, o umbigo dos criadores exerce uma força gravitacional desmesurada; os personagens se confundem com o próprio autor e são atraídos sem remédio para um mundo estático e cínico de classe média, fora das circunstâncias históricas que o cercam. Uma mirada aleatória na estante com os livros lançados no último ano mostra, porém, que os escritores não se acovardaram ao encarar a contemporaneidade, para sorte dos leitores.
Em um livro, a ameaça terrorista passa por cima considerações geopolíticas para servir de estrada a um dedicado diagnóstico psicológico, e um tratado do amor e do mal entre homens. Noutro, andamos ao lado de um jovem pobre, funcionário exemplar de uma rede de fast food, em um romance de formação que fala da antropofagia cultural dos garotos da classe média baixa. Outro, ainda, nos mostra uma ex-militante de esquerda, quem sabe freira, às voltas com um sertão arquetípico, do passado e do presente, dos sonhos frustrados de revolução à alegre rendição ao universo do consumo.
Não falta conjuntura na literatura brasileira, nem desejo de fazer da nossa aldeia um retrato do mundo, ou de vasculhar a alma alheia, para entendê-la, mais de perto. Há uma mulher desesperada em busca do filho sequestrado que nunca lhe será devolvido, mesmo que o encontre, porque já será outro. Há um simplório que, ao contar sua experiência com prostitutas à amiga que imagina ser lésbica, inspira nela uma coleção de reflexões irônicas sobre autonomia feminina e a misantropia impregnada nas relações dos homens contemporâneos. Há o medíocre intermediário dos políticos, que foge da corrupção para reencontrá-la nas relações familiares.
Há textos fragmentados e convencionais, linguagem gongórica e telegráfica, elipses e detalhismo. Há de quase tudo na literatura brasileira contemporânea, e não é por ter se negado a retratar o mundo à nossa volta (não negou) que a ficção brasileira é preterida, nos caixas das livrarias, em favor de livros de auto-ajuda, preleções de um midiático padre católico e livros pasteurizados para adolescentes. Literatura, ficção, vende pouco mesmo, no Brasil contemporâneo. Talvez pela competição com o áudio-visual e os encantos do computador. Talvez por que ¼ da população brasileira seja analfabeta funcional, como mostrou recente pesquisa de organizações não-governamentais, noticiada pelo site Nexo. Ou porque, segundo outra pesquisa de sucesso em 2016, 44% dos brasileiros não tenham hábito de leitura, 30% jamais tenham lido um livro e, entre os que leram, a média de leitura tenha ficado em cinco livros por ano _ três, se excluídos os livros lidos por exigência escolar.
Lê-se pouco no maior país da América Latina.
E, no que se lê, há uma ausência inexplicável, impressionante, para quem se debruça sobre o país tentando identificar como ele mudou no último século e como poderá mudar, quando atravessar _ se atravessar _ a acidentada transição política que pôs grandes empresários e políticos de destaque na cadeia. Um personagem com peso crescente nos costumes, na cultura e na política está praticamente ausente dos livros no Brasil. É o brasileiro evangélico. Com exceções difíceis de localizar, um não-assunto para a literatura nacional.
Mas só para a literatura. O prefeito do Rio de Janeiro, capital simbólica do Brasil para os estrangeiros, é um pastor evangélico que, aos 40 anos (hoje tem 59), escreveu livros de forte conteúdo racista, demonizando as religiões de matriz africana. Nas eleições, renegou os textos, colheu votos, é a estrela de uma das duas principais igrejas de denominação evangélica, comandada por um dos maiores milionários do país, seu tio, com programas na televisão, jato particular e uma rede de igrejas espalhada por América Latina e África. Os brasileiros que se dizem evangélicos já são mais de um quarto da população e estima-se que superem um terço em 2020.
Mais organizadas, hierarquizadas e capilarizadas que qualquer partido político no Brasil, igrejas evangélicas também têm partidos associados, ainda que não oficialmente, e não formam um grupo homogêneo, ainda que sejam, no Congresso, aliados numa pauta conservadora, anti-homossexuais, com restrições à educação sexual, contra as religiões de matriz africana . O partido que ganhou a prefeitura do Rio de Janeiro, cujos dirigentes são todos ligados à igreja do prefeito, nem existia oficialmente em 2004 e, em 2012, elegeu 78 prefeitos e mais de 1,2 mil vereadores, como informou a Agência Pública, uma organização jornalística independente. Deputados e senadores ligados ás causas evangélicas são cerca de um quinto do Congresso Nacional.
A Operação Lava Jato, em que procuradores e policiais de um estado agrícola do Sul do país investigaram com dedicação o grupo político de esquerda que muitos deles atacavam em manifestações públicas e nas redes sociais, ganhou uma dimensão muito maior do que previam seus condutores. Ajudou a derrubar uma presidente da República, expondo sérias irregularidades e desmoralizando um partido político até então com grande popularidade. Mas contribuiu para levar ao poder integrantes de partidos que faziam parte do governo hoje denunciados como participantes da corrupção alvo da Justiça. O juiz-símbolo da investigação, no fim do ano passado, era fotografado em uma cerimônia pública trocando sorrisos e uma conversa amistosa com um líder político da oposição ao governo derrubado que hoje é alvo de cinco inquéritos judiciais e acusações graves de corrupção.
Envolvidos ou espectadores no escândalo, os brasileiros veem todos os partidos de maior peso na vida política nacional, com suas figuras mais proeminentes, ameaçados de cadeia ou da condenação dos eleitores. Os partidos tradicionais estão perplexos, seus lideres confusos, os militantes, desalentados. Sobrarão poucos grupos políticos com força de convocação, presença nacional e adeptos incondicionais para aproveitar a sucata do sistema político e ocupar os postos executivos e legislativos no país. Um desses grupos é a comunidade evangélica e suas igrejas, um dos principais lugares de acolhimentos para os pobres, marginalizados e desesperados, bem mais heterogênea do que parece, vista de fora, e bem mais liberal em costumes entre os crentes do que defendem seus reacionários representantes no Congresso. Não se pode entender o Brasil, hoje, sem entender essa população.
A literatura brasileira pode falar do que bem quiser, e fala bem; mas é muito curiosa essa miopia que exclui os evangélicos de seu campo de visão, tão cheio de cores e biodiversidade.
SERGIO LEO é escritor, jornalista e artista plástico. Trabalhou nos principais jornais do país e foi, de 2003 a 2015, colunista do jornal Valor Econômico. Em 2009, ganhou o Prêmio Sesc de Literatura om o livro de contos “Mentiras do Rio”(Record). Em 2014, publicou Äscensão e Queda do Império X”(Nova Fronteira) e “Segundas Pessoas (e-galáxia). Tem contos publicados em antologias, entre elas “Conversa de Botequim”, recém-editado pela editora Mórula.