top of page

CONTO: AS MANGAS

*SUELEN CARVALHO

 

 

Uma única capela, única festa, única peça de tecido para dois vestidos.

Dois casamentos, o meu e de minha prima Dulce. A cerimônia foi na capela de nossa Senhora de Nazaré do 22.

Vivíamos nesse vilarejo com nome de número, que ficava a 20 quilômetros da Parada Timboteua da Estrada de Ferro Belém-Bragança.

 

 

***

 

Dois jovens comerciantes frequentavam aquelas paragens para fazer negócios. Traziam o arroz que era vendido na taberna do seu Araújo e levavam frango e porcos para Belém. Nós criávamos porcos.

Eles cruzavam a região ao longa dos trilhos do trem e eram conhecidos por fazerem contratos muito lucrativos e terem ótimos contatos comerciais na capital.

Ouvia-se pelos pátios das casas aos sábado à tarde, onde as senhoras sentavam para pegar a brisa e catar os piolhos das crianças, que procuravam casamento. Toda vez que Hermínio e Ramos chegavam à vila, as moças se enfeitavam e sorriam.

Não se via moças mostrando os dentes em dias comuns. 

Foi na taberna, em um dia de entregas, que vi Hermínio e Ramos pela primeira vez. Eu não tinha me arrumado, estava com um vestido manchado de água sanitária, o último botão tinha caído, rosto suado e rabo de cavalo.

Estava lavando roupa e acabou o sabão.

Dulce vestia sua roupa de missa e ainda era quarta-feira.

Não nos cumprimentamos, mas Dulce sorria. Eu apenas pedi um pedaço de sabão de coco para o seu Araújo, sem olhar para os lados, disse para anotar, e saí olhando para o chão.

- Eles olharam pra gente, Graça, eles olharam pra gente!

- Claro que olharam, só tinha a gente lá.

- Eu quero sair desse buraco de lugar, eu preciso me casar.

- Agora entendi esse interesse todo em vir comigo comprar sabão, ajudar com a roupa que é bom.

- Claro que eu sabia. Tu achas que eu quis te acompanhar até a taberna debaixo desse castigo de sol só pra jogar conversa fora? Só se fosse.

Dois dias depois meu pai me chamou no pátio enquanto fumava seu cigarro de palha. Contou que eu e Dulce fomos pedidas em casamento. Ele e meu tio Armando já tinham acertado tudo.

A festa seria em dois meses mais ou menos.

Achei uma notícia boa. Afinal, eu já tinha dezessete anos.

Já estava na idade, como diziam.

 

***

 

Me lembrei de Ernesto, que conheci em Belém ano passado, nos meses que morei com a Dona Amélia para estudar. Dona Amélia era minha madrinha de batismo, a que mandava vestidos usados de vez em quando.

Eu cuidava da casa dela, das roupas e das crianças de manhã e à tarde ia pra escola. Ela comentava com a vizinha o quanto eu era especial, uma sorte me mandarem pra lá. Eu puxava água do poço no braço e quando o marido dela chegava, já podia ir direto para o banho. Eu poupava esforços de todos naquela casa. Eu me orgulhava de ser útil e especial, por preferirem a mim e não a Dulce ou outra minha irmã.

Achava Ernesto muito simpático e começamos a trocar cartas. Dona Amélia descobriu e mandou avisar a minha mãe. Ao me aconselhar, dizia que eu era muito branquinha para me meter com aquele sujeito que trabalhava nos serviços gerais da Estrada de Ferro de Bragança. Arranjaria algo melhor. Me arrependi das cartas e de Ernesto porque não queria voltar para o 22.

Minha mãe chegou em silêncio para me buscar uma semana depois. Eu puxava com força a água do poço e dona Amélia gritou meu nome. Enquanto elas conversavam tomei um banho e fechei a pequena sacola. Minha mãe não falou comigo, nem me olhou nos olhos. Eu tampouco a encarei.

Agradeceu dona Amélia e fazia de conta que nem me conhecia, mas me puxou pelo braço. No caminho da estação de São Braz até Castanhal, só não me chamou de puta. De lá até a parada da Timboteua ficamos caladas.

Descemos do trem com as roupas chamuscadas das cinzas da locomotiva.

 

***

 

A mamãe não queria que a Fátima fizesse escola.

Fátima era minha irmã mais velha, que fugiu de casa aos quinze anos para se juntar com um libanês que ninguém sabia de onde tinha saído, nem o que fazia e onde morava. Na madrugada da fuga, meu pai foi avisado por uma vizinha, e conseguiu interceptar a menina para dá-lhe uma surra terrível. Era esse o costume no Ceará e meu pai levava o Ceará com ele para onde fosse.

O libanês nunca mais foi visto por ali.

Os roxos no corpo de Fátima nunca me saíram da cabeça.

Nem louca eu faria uma coisa daquelas. Dá uma de besta. Mas a mamãe temia e me trouxe de volta pra casa. Não soube mais de Ernesto, lamentei por ele por algumas semanas. Por ter sido obrigada a voltar para casa dos meus pais eu lamentei por bem mais tempo.

Não chegamos nem a nos tocar nas mãos.

Casamento era o único destino das meninas, ou se vai para o convento ou se casa. Eu tinha carinho por Ernesto, hoje sei, mas quando meu pai disse que estava acertando o meu casamento, saber que alguém queria casar comigo me parecia muito mais importante do que saber quem era esse alguém.

Saí correndo para falar com Dulce, que morava a uns quinze minutos da minha casa. Pulei a janela do quarto dela, que ficava para o quintal cheio de ingazeiras e uma cacimba.

Dulce se penteava em frente ao espelho desbotado, pendurado perto da cama. Seu rosto tinha buracos cinzas no reflexo.

- Tu já sabes?

- Claro que sei, eu não te disse?

- Me disse o quê?

- Que eles tinham ficado interessados? Tinham olhado pra gente?

- Eles quem?

- Os comerciantes, lesa! O Hermínio e o Ramos, abestada! Na taberna do seu Araújo.

- Com qual eu vou casar?

- Tu casas com o Hermínio e eu com o Ramos.

- Quem decidiu isso?

- Foram eles, claro!

Eu não sabia quem era quem. Enquanto Dulce falava de festa, de vestido, que Ramos já tinha uma casa perto da estação de Igarapé-Açu, que finalmente ia ter a própria casa, eu fiquei tentando adivinhar qual dos dois rostos era o do meu futuro marido Hermínio.

Eles voltariam no 22 em uma semana, para noivar, acertar os preparativos e marcar a data definitiva. 

 

 

***

 

A frente da casa estava só lama. Choveu a manhã inteira e entrou pela tarde. Naquela época, não se via asfaltamento nem a quilômetros dali. Talvez só em Belém. Hermínio e Ramos chegaram na tarde dessa quarta-feira de março, no trem Misto, que trazia e levava produtos agrícolas para Belém. Eu e Dulce estávamos esperando na sala, com nossos vestidos de domingo, com nossos pais.

Nossa pupunheira era precoce e já tinha dado o primeiro cacho. A mamãe as cozinhou e descascou, colocou em um prato de porcelana, passou um café e fez tapioquinhas com manteiga.

Não toquei em nada, estava com fastio. 

Dulce comia sem parar, nem parecia que estava prestes a receber o noivo.

Chegaram com muito educação, mas cumprimentaram nossos pais sem sorrisos. Meu pai nomeou cada um e, finalmente, pude ver quem era o meu noivo. Antes disso ele era apenas um vulto na penumbra da taberna do seu Araújo.

Hermínio comeu uma pupunha e elogiou. Era da boa. Ramos tratou de falar da data, já muito próxima. Nós duas ficamos caladas, ninguém nos dirigiu a palavra. Dia e local decididos, uma festa só.

Restou falar dos vestidos.

Fomos lembradas.

Hermínio disse que tinha uma peça inteira de cetim de seda branca para os dois vestidos. Tinha negociado com turcos recém chegados a Belém em troca de arroz ou algum frete no trem. Nós poderíamos escolher os modelos e a costureira. Cetim de seda era algo muito raro até de se ouvir falar por ali. Depois, Hermínio acrescentou que o peça tinha sido recebida em pagamento de uma dívida.

Meus pais consentiam com a cabeça. Pareciam orgulhosos dos negócios do futuro genro.

Dulce disse que a melhor costureira da região era a Clotilde, sua tia por parte da mãe já morta. Todos concordaram que os vestidos seriam feitos por ela. O casamento seria em quarenta dias.

Na saída, Hermínio me olhou e levantou o chapéu. Talvez um segundo de contato visual.

Não vi como Dulce e Ramos se despediram.

Noivado deveria ser assim mesmo.

 

 

***

 

Hermínio e Ramos voltariam para noivar em oito dias. Enquanto isso, trataríamos sobre os vestidos com a tia Clotilde. A minha mãe, meu pai e tio Armando estavam cuidando dos preparativos da festa, comida e doces. Os convidados eram parentes e moradores do 22, o que era quase a mesma coisa.

Na primeira visita a costureira, para tirar as medidas, Clotilde elogiou a qualidade do tecido, disse que era muito fino e que tinha o suficiente para as duas noivas, com corte, detalhes e acabamentos. Daria até para encapar os botões. Para escolher os modelos, a costureira mostrou alguns recortes de revistas, além de desenhos dela mesma. Ela tinha trabalhado, quando mais nova, com uma famosa modista de Belém, que copiava os vestidos franceses das esposas e filhas dos barões da borracha. Saiu do ateliê quando conheceu um açoriano vindo para essas terras para desenvolver colônias agrícolas ao longo da estrada de ferro. Ele permitiu que ela continuasse costurando pra fora.

Desde criança que eu desejava um vestido de mangas compridas. Nunca tinha possuído nenhum. Nem pijamas. Quando comecei a costurar em casa, fazendo peças simples e pequenos concertos, os tecidos nunca eram suficientes. Restava colocar mangas curtas. Agora que eu estava prestes a me casar e que uma peça inteira de seda tinha sido comprado pelo meu noivo, eu teria finalmente as minhas mangas compridas. 

- Tu vais morrer de calor, Graça.

- Não tem problema, é só um dia. Depois vou tingir e transformar em outro vestido.

- Eu quero mangas bufantes e bem justo na cintura.

Dulce não tinha cintura, era reta como uma porta dos braços ao quadril. A tia costureira disse logo que a saia deveria ser rodada, como mais volume embaixo.

Eu preferia uma saia evase longa e que as mangas chegassem aos punhos. Clotilde concordou. Eu tinha boa silhueta.

Fica bom para o seu corpo de viola, disse a costureira.

 

***

 

O mesmo padre, o mesmo horário, os mesmos convidados. Dois vestidos diferentes.

Na manhã do casamento, a costureira Clotilde chegou em minha casa com o vestido pronto. Abri o pacote e vi as mangas curtas. Quis mastigar a costureira, que explicou que cortou a saia evase e não sobrou tecido para as mangas, como havia planejado. Evase consome duas, três, quatro larguras da peça. A justificativa fazia sentido, mas as mangas eram mais importantes que o comprimento das saias.

A mamãe entrou no quarto e disse que o vestido estava muito bem feito. Suas únicas palavras. Nada sobre as mangas, nado sobre a palidez do meu rosto e os olhos opacos de desalento.

Olhava para aquele vestido e me recusava a aceitar que era o meu vestido de noiva.

Um vestido de mangas curtas.

Já estava com o véu na cabeça, de anáguas novas e perfumadas, mas não queria vestir aquele vestido que não era o meu vestido. O vestido que eu escolhi não veio a existir. Eu poderia espernear, me recusar a casar.

Não o fiz porque nunca desobedeci, sempre aceitei o que me era imposto sem reclamar. Eu era a especial. A filha especial.

Tive uma pequena vertigem, medo do casamento, de qual vida viria em frente. Se o vestido que eu escolhi não me foi dado, não existe para mim, o que esperar de um noivo que escolheram por mim?  Como funciona um marido?

As mangas curtas eram um mau agouro.

É possível desistir? É possível recusar?

Lembrei de Ernesto.

 

***

 

 

Cheguei na porta da capela com o papai.

Faltava Dulce para entrarmos todos juntos.

Ouvi sua voz pelas costas, gritando que estava pronta, de mãos dadas com tio Armando.

As mangas compridas estavam no vestido dela.

 *Suelen Carvalho é autora do romance "O passado é lugar estrangeiro" (Editora Patuá), lançado em 2017. É paraense e mora atualmente no Rio de Janeiro.tu propio texto y edítame. Es muy sencillo.

bottom of page