O RISCO DE USARMOS A MEMÓRIA COMO MATÉRIA FICCIONAL
por Ronaldo Cagiano
A memória é um estranho baú.
(Per Johns, in “As aves de Cassandra”)
Creio que nenhuma ficção constitui-se num todo isento de memória. Não há, nesse particular, o que eu chamaria de uma escrita puro-sangue, em que nos abstraímos totalmente das experiências do passado e do presente, pois na construção de uma narrativa, essas percepções – frutos do inconsciente individual e coletivo, em que o apelo da memória se insinua para uma coabitação, ou simbiose com a invenção – acabam compondo a(s) história(s), seja no romance, no conto e até mesmo na poesia.
Nossas escolhas na composição de uma trama, na construção psicológica de um personagem, na configuração de um enredo bebem nessa nossa relação com algo ancestral, e isso é caudatário, sem dúvida de todo um pretérito vivencial. São refluxos da lembrança e da memória, quando nos apropriamos de detalhes, sensações, vivências próprias ou de terceiros e outras experiências sensoriais, que alicerçam a arquitetura de uma obra literária.
Entendo que todo ato de criação sinaliza com alguma reconstrução de um passado, instância em que a memória estabelece uma ponte com a inventividade do artista/autor para sua reelaboração artística ou literária. No fundo, toda obra (e aqui falamos particularmente do livro) é reinvenção de alguma coisa que foi ou poderia ter sido, é reordenamento de um caos interior que busca referenciais já conhecidos ou percorridos. Nisso assenta-se o risco de o autor – ainda mais se adotar do recurso da narrativa em primeira pessoa – ser confundindo com o narrador, com o personagem ou protagonistas e, por incauto que seja o leitor, não discernir um do outro.
Essa confusão de vozes (e personas) é comum ocorrer. Recorrente ouvirmos ou lermos relatos de que dado livro é mera exposição do autor, configurando-se como relato autobiográfico ou autoficção, por se identificarem situações e sentimentos encontradiços ou que espelham uma certa biografia pessoal. Principalmente se há, repito, a prevalência da primeira pessoa, então fica nítida essa fragilidade, que permite ao leitor intuir que a história não é invenção ou criação, mas papel carbono de uma vida real, no caso a do autor, porque impossível definir o liame entre um e outro.
De qualquer maneira, tenho apenas como absoluta a certeza de que escrever é sempre correr riscos. Do livro respingado pela memória ou puramente invenção, não há como separar o factual do ficcional. O jogo textual é também um simulacro, uma brincadeira de esconde-esconde entre o vivido e o inventado. E a escritura - uma maneira pessoal de abalar as estruturas a partir de uma forma de olhar o mundo interior e a realidade externa que delimitam o autor - equilibra-se entre o que existiu e o que recriamos a partir do que vimos, vivemos ou sentimos.
Então, a insistência do passado, como matéria viva do pensamento, reorganiza a realidade presente e a literatura se nutre desse processo, ainda que diluída essa memória, no sentido de tornar menos confessional sua presença subjacente e conferir à confluência entre ficção e vida real uma autonomia e uma legitimidade que permitam ao autor certo distanciamento de seus personagens, atribuindo a estes identidade e independência.
Apenas pare referendar que os riscos são iminentes e imantes a qualquer ato artístico, principalmente o literário, veja, por exemplo, que “Guernica”, de Picasso, nada mais é que reverberação da memória do artista sobre a tragédia e os horrores da Guerra Civil Espanhola.
Na esteira dessa percepção estética, vale lembrar o que disseram/escreveram três pesos pesados da literatura nacional, que ratifica essa compreensão acerca da interação entre memória e ficção: Caio Fernando Abreu ("Minha vida está nos meus livros. Não há na minha história muitos fatos externos à obra que escrevi, porque o ponto de partida de tudo sempre foi pessoal demais."), Lygia Fagundes Telles (“É difícil separar a ficção da invenção, a fantasia da memória. Não há uma linha separando o que você viu do que você sonhou. A imaginação ocupa o espaço da memória.”) e Elvira Vigna (“Para fazer literatura você tem de ser terrivelmente sincera. E é incrível: se você atinge a verdade, está fazendo ficção, que é mentira.”).
Nesse sentido, a ficção não é autossuficiente, ela necessita de interagir com outras fontes além da realidade e eis que vem a memória como força subsidiária nesse contexto. E com ela eis o risco de não sermos compreendidos quando a matéria da memória se alberga no texto é intrínseco, sem impedir o vínculo entre personagem e narrador (ou autor), mas vale o perigo dessa travessia (ou aposta) em nossa fidelidade criacional ao pudor de qualquer cautela, sob pena de não podermos comunicar o mundo que nos inquieta e as questões que nos agitam intimamente.
Portanto, impregnada ou não de memória, com laivos de autobiografia ou não, a despeito dos riscos da incompreensão ou deturpação dos sentidos da escrita, impende dizer, como Lúcio Cardoso já nos advertiu: “O importante é escrever aquilo que nos ocorre – sua “verdade”, seu “peso”, virá depois, se houver necessidade disso.”
Devemos ainda considerar o vasto conteúdo enigmático do inconsciente, que cria armadilhas quanto às reminiscências, ao tentar preencher lacunas ou produzir esquecimentos que perpassam sutilmente a escrita e a vida do escritor. Escrever, pois, é navegar num Letes com sinal trocado, a memória é esse rio insubordinado que irrompe quando quer, baú de espantos a nos desafiar confundindo realidade e ficção.
Ronaldo Cagiano
Lisboa, Primavera de 2017