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SUBMERSOS E INVISÍVEIS, LITERATURA DE INCÔMODO

 

*Cinthia Kriemler

Em dezembro de 1991, trabalhando numa empresa de comunicação que montou a Assessoria de Imprensa da I Semana Social Brasileira, promovida pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB, conheci de perto Herbert José de Souza, o Betinho. Em contraponto a um painel que chamava a economia informal de “economia invisível”, Betinho leu o seu texto “Economia submersa, solução perversa”. Na abertura de sua fala, disse: “Não se pode chamar de invisível uma economia na qual se encontram milhões de brasileiros”. Tomando como exemplo a venda de drogas por pequenos intermediários — os chamados “aviões” —  nos morros do Rio de Janeiro, citou o exemplo de uma senhora de comunidade, de 80 anos, que havia sido presa por vender maconha. Ao ser interrogada, declarou surpresa: “Ué, eu tinha que dar de comer aos meus netos. A mãe deles sumiu no mundo e deixou as crianças comigo.” De um lado, a lei. Do outro, desemprego, fome e necessidade de sustento. O conceito de moralidade e de legalidade se chocando com o conceito de sobrevivência e de direitos básicos. A palestra me impressionou bastante. Não pela nomenclatura. Invisíveis ou submersas, aquelas pessoas eram, ao final do dia, cidadãos sem nenhuma voz. Na mesma Semana Social Brasileira, conheci o trabalho da Pastoral da Mulher Marginalizada — que, à época, era chamada informalmente de Pastoral das Prostitutas  —, da Pastoral dos Nômades, da Pastoral Carcerária, da Pastoral do Povo da Rua. Cada fala, um mundo, uma outra perspectiva. Um universo de brasileiros afundados na lama opaca do descaso político, da economia desigual, da omissão social. Foi ali, naquele ambiente de descobertas (tardias, confesso), que compreendi ser essa a pior segregação imposta aos marginalizados: a usurpação da fala. Emudecidos pela opressão de um sistema brutal, que lhes impedia a identidade e a sobrevivência, foram transformados em pessoas sem direitos e, por extensão, exploradas. Carreguei comigo cada história que ouvi naquele evento.

Somente quinze anos depois comecei a escrever ficção. E desde o primeiro momento da minha escrita, uma única preocupação: dar voz. Por isso sigo falando de crianças abusadas, de mulheres que apanham e são estupradas, de preconceitos, de perdas, de solidão, de violência, de racismo, de apartheids diversos (e aqui eu me aproprio do conceito teórico de segregação para usá-lo como licença poética). Apoio a causa feminista, porque historicamente somos nós as grandes oprimidas. Denuncio violências. Falo dos excluídos, dos humilhados. Mostro a alma humana em suas feiuras e belezas —  sim, eu sei, esse é um clichê descarado. O que me exijo, em meio a esse cenário, é jamais abandonar a estética dos textos. Falar dos marginalizados, denunciar, defender minorias precisa ser parte do fazer literário. Para que não haja o risco de entregar um texto engessado pela rigidez de linguagem da não ficção. Apesar dos temas áridos, a minha escrita é baseada, muitas vezes, na prosa poética, essa forma híbrida em que a percepção e a expressão buscam assegurar lirismo ao texto. Enfim, acredito que a seriedade dos temas não possa excluir a estética.

Há perguntas. E as perguntas não param. As que me faço e as que me fazem.

Se não me comprometo em excesso com a causa feminista. Se não é repetitivo falar somente de miséria e de dor. Se faço literatura engajada. Esses são alguns dos questionamentos que me assolam.

Para cada pergunta a resposta é uma outra pergunta.

Alguma coisa mudou? Algo que justifique mudar de rumo? A vida deixou de ser uma separação entre privilegiados e explorados? Acabaram-se as crueldades contra as mulheres, os preconceitos, a violência? As crianças pararam de morrer por balas perdidas? Deixaram de ser estupradas, abandonadas, prostituídas?

Literatura é incômodo. É como eu compreendo a escrita. E o mundo é uma caixa de horrores. Se não formos capazes de escrever sobre esses horrores (ou nos recusarmos a falar sobre eles), estaremos descartando a possibilidade transformadora da literatura. Ou varrendo para debaixo do tapete realidades dolorosas. Quando nos recolhemos em mundos perfeitos, somos cúmplices no emudecimento das minorias.

Escrever para incomodar. Para abrir o lamaçal e fazer emergir os submersos. Para dar cor aos invisíveis. É isso que dá rumo à minha escrita. Ou, como diria Svetlana Aleksiévitch: “O que me interessa é o pequeno homem. O pequeno grande homem, eu diria, porque o sofrimento o torna maior.”

 

 

 

*Cinthia Kriemler é carioca e mora em Brasília. Autora, pela Editora Patuá, de O sêmen do rinoceronte branco (Contos, 2020); Tudo que morde pede socorro (Romance, 2019);  Exercício de leitura de mulheres loucas (Poesia, 2018); Todos os abismos convidam para um mergulho (Romance, 2017), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018; Na escuridão não existe cor-de-rosa (Contos, 2015), semifinalista do Prêmio Oceanos 2016; Sob os escombros (Contos, 2014); e Do todo que me cerca (Crônicas, 2012). Participa de antologias de contos e de poesia. Tem textos e poemas publicados em diversas revistas eletrônicas.

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