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Breves apontamentos sobre a temática homoafetiva na literatura brasileira
Cristina Judar

A uma mulher amada*

Ditosa que ao teu lado só por ti suspiro!
Quem goza o prazer de te escutar,
quem vê, às vezes, teu doce sorriso.
Nem os deuses felizes o podem igualar.
Sinto um fogo sutil correr de veia em veia
por minha carne, ó suave bem querida,
e no transporte doce que a minha alma enleia
eu sinto asperamente a voz emudecida.
Uma nuvem confusa me enevoa o olhar.
Não ouço mais. Eu caio num langor supremo;
E pálida e perdida e febril e sem ar,
um frêmito me abala… eu quase morro… eu tremo!

* Poema extraído de “Eros, tecelão de mitos: a poesia de Safo de Lesbos”.

[organização e tradução Joaquim Brasil Fontes Júnior].

São Paulo: Estação Liberdade, 1991.

 

 

Psappho, Psappha, Safo. A transgressora, aquela que não se adaptava às regras sociais vigentes. A amante de mulheres nas esferas mental, física, simbólica. Incompreendida, inúmeras vezes banida e censurada ao longo dos séculos.

Nascida na ilha grega de Lesbos, por volta de 612 a.C., ela foi citada como a décima musa, por Platão: “Dizem que são nove, as Musas. Como se enganam! Pois contem bem: com Safo de Lesbos, dez Musas” (Antologia Palatina IX, 506 IN: FONTES, 1991, p. 115).

Tida como a “responsável” pela origem do termo lésbica como definição para as mulheres que vivem relacionamentos homoafetivos, Safo é considerada a maior poeta grega do gênero lírico da Antiguidade.

A história dessa figura controversa – que até hoje divide opiniões a respeito de sua real trajetória, amores e escritos e, certamente, continuará dando margem para inúmeras interpretações por parte do público leitor, da crítica e da academia – permanecerá nebulosa em diferentes aspectos.

No entanto, temos, na palavra por ela cunhada, valor e significados suficientes para que possamos afirmar sua importância e papel definitivo no que diz respeito à representação homoafetiva entre mulheres na literatura, com reflexos que podem ser identificados até a atualidade.

Assim, tendo a figura de Safo de Lesbos como ponto de partida e farol, segue aqui uma breve reflexão sobre alguns aspectos que hoje envolvem a literatura com temática LGBT e seus autores.

*

Quando a nossa voz não ecoa em outras vozes, corre-se o risco dela não ser ouvida. Pois não há referência ou paralelismo capazes de endossar a mensagem. É como se, ao olhar para uma cor desconhecida pela nossa retina, não conseguíssemos processá-la como novidade, acabando por encaixá-la, forçosamente, a uma classificação pré-existente referente a outra tonalidade.

Mas não por isso devemos deixar de expressar o que pensamos, mesmo quando se trata de uma parte diminuta de um terreno ainda pouco conhecido ou discutido. Afinal, essa primeira fagulha poderá ajudar a constituir entendimentos que tomarão corpo e relevância se somados às reflexões de várias outras mentes dispostas a transformar aquilo que, por uma série de razões, precisa ser revisto.

Pensei em tudo isso para, enfim, chegar ao ponto desejado: eu não gostaria que os escritores e seus livros fossem separados por prateleiras. Não digo apenas as espaciais, as das livrarias, com maior ou menor destaque para as obras dependendo do assunto, do potencial de venda, da personalidade por trás do livro ou, até mesmo, do popular "jabá". Falo aqui da vida editorial mesmo. Eu já vi e ouvi de tudo um pouco. Há escritor que é categórico: afirma, por A + B, não ter tido espaço para sequer apresentar os seus livros pelo único fato de seus personagens serem LGBTs. Nenhuma editora se propôs a, ao menos, lê-los. Diante disso, a única saída foi optar pela autopublicação ou publicar via editora especializada.

Acontece que, na atualidade, quando falamos sobre a presença LGBT na literatura, é possível identificar dois fenômenos distintos: de um lado, editoras segmentadas, criadas para atender exclusivamente à demanda por livros que, por uma série de fatores, não conseguem entrar no dito “mercado editorial tradicional”. Não há como não reconhecer a importância dessas editoras e selos que, ao oferecer produtos culturais LGBTs para um público carente por obras literárias que refletem a realidade em que vive, possibilitando o acesso a informações e a narrativas que fortalecem identidades, auxiliam o processo de autoaceitação e, inclusive, são instrumentos poderosos no combate à homofobia. 

Se por um lado elas solucionam a questão da impossibilidade de publicação para dezenas de autores, mantém tais escritores de certa forma restritos a uma determinada parcela do público. Em sua maioria, pessoas LGBTs interessadas em consumir cultura LGBT (algo que, obviamente, não representa um problema caso seja esse o real objetivo do autor).

De outro lado, citando aqui a literatura não-segmentada, temos escritores (sejam eles LGBTs ou não) que incluem livremente em suas obras personagens e narrativas LGBTs, com os mais diferentes pesos. Esses autores são reconhecidos, são lidos, participam de grandes eventos literários, recebem prêmios, são objeto de estudos acadêmicos e ganham destaque na mídia. Basta lembrar de Caio Fernando Abreu e Natália Borges Polesso, apenas para citar, rapidamente, dois escritores brasileiros contemporâneos. Ou seja, a afirmação de que não existe espaço para a temática LGBT nas editoras convencionais e no segmento editorial generalizado não é de todo verdadeira.

Também é preciso saber separar as coisas. Ou melhor, identificar as características e os processos atrelados ao mercado editorial, aos quais todos, de certa forma, estamos sujeitos. Não se trata aqui de fechar os olhos para o preconceito existente em todas as áreas; infelizmente, também encontrado no mercado literário, e que, obviamente, deve ser devidamente identificado e combatido.

Qualquer autor iniciante ou pouco conhecido sabe das dificuldades envolvidas na busca pela publicação no Brasil e, porque não dizer, no mundo. Independentemente do tema escolhido, o caminho até chegar a uma editora, ter seu livro lido, receber retorno, uma possível proposta, considerando o tempo envolvido até que o contrato seja uma realidade, para – somente então – ter início o trabalho de edição e de produção geral da obra até a sua impressão, pode ser uma saga. E, na maioria das vezes, o é.

Penso que, diante disso, talvez seja o momento de criar iniciativas capazes de integrar dois mundos que, em sua natureza, são os mesmos. E quais seriam os possíveis caminhos para diminuir a segregação e favorecer a inclusão?

Criar publicações e encontros entre acadêmicos, pesquisadores, escritores, leitores, casas editoriais e o público em geral, estimulando o diálogo e a reflexão para que o mercado editorial tenha uma distribuição de espaço e visibilidade mais igualitária.

Incluir, cada vez mais, livros, editores, autores e estudiosos sobre a temática LGBT em eventos de grande porte e visibilidade, voltados para o público em geral.

De forma a “engrossar o coro” e legitimar o discurso, olhar para o passado (assim como aqui fizemos com Safo) e aprender com aqueles que, no decorrer da história, quebraram as convenções ao criar personagens e obras que, de forma mais ou menos evidente, trouxeram à tona as inúmeras questões da homossexualidade.

Mostrar que muitos obstáculos podem ser transpostos com ações simples. Ou então, com a firme intenção de sair da zona de conforto, de meios em que já se sabe, de antemão, que o livro LGBT será aceito.

Definitivamente, não há fórmula ou garantia. Sem dúvida, há inúmeros caminhos, inclusive, a serem descobertos por nós. Mas o que se faz clara é a necessidade imediata de trazer autores e livros com temática LGBTs para uma realidade comum, acabando com as barreiras que separam “escritores e escritores” que, em princípio, integram uma grande e única Literatura.

 

***

Cristina Judar é escritora e jornalista, paulistana, autora das HQs "Lina" (Editora Estação Liberdade) "Vermelho, Vivo" (Devir), do livro de contos "Roteiros para uma Vida  Curta" e do romance "Oito do Sete" (ambos publicados pela editora Reformatório). Também é autora do livro-arte 'Luminescências', criado em parceria com a artista visual Paula Mastroberti, e do Questions For a Live Writing, projeto de produção literária desenvolvido na Queen Mary University of London.

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