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LP no Brasil

ENTREVISTA A C.Henrique Schroeder por Sergio Tavares 
“Somos um país iludido, com uma literatura iludida”

 

Por pouco, não é mera figura de linguagem dizer que o catarinense Carlos Henrique Schroeder transpira literatura. É escritor, editor, colunista de jornal, fundador e organizador de eventos literários e, acima de tudo, um leitor inquieto e voraz. Foi por conta da leitura cuidadosa que, em 2014, Schroeder trouxe a proscênio o escritor Raúl Damonte, argentino performático ainda sem uma tradução adequada de suas obras no Brasil.

Em “As fantasias eletivas” (editora Record), Copi, alcunha de Damonte, é também o nome de uma personagem travesti, que inicia o romance com o tamanho de um coadjuvante e, pouco a pouco, vai roubando o lugar de protagonista. O livro, marcado pelo diálogo entre texto e imagem, é um elogio à arte, em especial aos arroubos da literatura. Uma maneira engenhosa, afinal, de usar a ficção para reverenciar grandes narradores latino-americanos que compuseram sua formação literária.

Em entrevista cedida a La Pecera, Schroeder fala sobre suas primeiras influências, sua aproximação com a literatura argentina, a carreira literária, o cenário atual (e político) da literatura brasileira e a importância de ter traduções de suas obras. Além disso, revela, em primeira mão, o enredo de seu próximo romance e o porquê de defender o ofício da escrita, apesar de todas as dificuldades. “A literatura ainda é uma arma perigosa”, dispara.

 

 

LA PECERA - Qual o primeiro contato que se recorda com a literatura argentina?

 

CARLOS HENRIQUE SCHROEDER - Eu morei no final da minha infância e no início da adolescência em Balneário Camboriú, cidade do litoral norte de Santa Catarina que recebia milhares de argentinos nos anos 1980 e 1990. Então sempre tive contato com a cultura argentina, com a música, com os livros. Foi uma namorada argentina que me apresentou Cortázar, na adolescência, e depois disso entrei numa espiral da literatura argentina: Borges, Alejandra Pizarnik,  Macedonio Fernandéz, Alfonsina Storni, Copi, Juan José Saer, César Aira, Manuel Puig, Sergio Chejfec. Autores muito diferentes entre si, mas que ampliaram meu modo de ler e de entender a escritura. Lembro muito bem do prazer da descoberta desses autores e autoras, por indicação ou ainda nos sebos da cidade (em espanhol), ou quando os hóspedes do hotel em que eu trabalhava esqueciam bons livros. Foi uma época mágica, quando eu tinha todo o tempo do mundo para ler.

 

LA PECERA - O que encontrou na leitura desses autores que a diferenciava da leitura de autores brasileiros que já conhecia?

 

CARLOS HENRIQUE SCHROEDER - Eu falava espanhol, mas não escrevia e tampouco lia bem no idioma. Então a descoberta da literatura argentina foi também a porta de entrada para o idioma espanhol em sua plenitude, o que me levou para outros autores latino-americanos e espanhóis. E me espantava com uma parte razoável dos turistas argentinos e argentinas, pois tinham ao menos uma noção básica da literatura do seu país, e discutiam apaixonadamente. Isso me impressionou bastante. Os anos 1990 foram bastante estranhos:  foi a década da abertura do mercado brasileiro aos produtos importados, então estavam todos ansiosos e deslumbrados com tudo que estava chegando. Eu me apeguei nos livros para atravessar essa década, foi o que me impulsionou para escrever também.

Mas na verdade os autores que citei na primeira pergunta são tão díspares, diferentes em temas e estilos, que alguns encontravam pequenos paralelos com a diversidade brasileira também: tínhamos João Gilberto Noll, Sérgio Sant´Anna, Manoel Carlos Karam e Hilda Hilst (e muitos outros) em plena atividade.

 

LA PECERA - É interessante você perceber que foi o apego a esses livros - e, por conseguinte, a seus autores - que o levaram a escrever. Pensando dessa forma, de que maneira consegue distinguir os elementos de escrita que foram fundamentais para a formação da voz literária que sustenta hoje?

 

CARLOS HENRIQUE SCHROEDER - Somos a soma das nossas referências, então tudo que li, vi, escutei e vi contribuiu para a minha formação. Desde os quadrinhos da infância, os filmes ruins da Sessão da Tarde e Supercine, as músicas das rádios de rock e os espetáculos de teatro que pude ver. Mas é claro que a literatura foi (e é) minha melhor companhia, pois sou um doente de literatura, sofro do Mal de Montano, termo usado pelo Vila-Matas no seu romance homônimo. Quando um livro te atravessa, é para sempre. Lembro de quando li Kafka, Camus e Dostoiévski, também na adolescência, e isso mudou radicalmente minha visão de mundo. Eu fui o típico nerd do interior que passou todo seu tempo em cima dos livros, meus amigos dirigiam, tinham um monte de namoradas, mas eu sempre fui o cara caseiro que ficava com nariz enfiado nos livros. Minhas habilidades sociais só aumentaram quando comecei a trabalhar em hotéis, como recepcionista noturno. O contato com hóspedes de diversas nacionalidades e realidades sociais, a leitura e a escritura incessantes (sobrava muito tempo na madrugada) ajudaram, num processo de seleção natural, a escolher os caminhos que eu queria percorrer no terreno pantanoso dos processos criativos.

 

LA PECERA - Já que trouxe à baila seu antigo trabalho de recepcionista noturno de hotel, no seu romance "As fantasias eletivas" o protagonista atua no mesmo emprego, no qual ele conhece uma travesti de alcunha Copi, que recebeu esse nome em homenagem ao escritor Raúl Damonte. Qual a sua relação com a obra de Copi e o quanto de verdade há na construção dessa personagem?

 

CARLOS HENRIQUE SCHROEDER - Quando comecei a trabalhar como recepcionista, passei por quatro ou cinco hotéis diferentes na cidade, trabalhando em turnos alternados e com públicos diferentes. Foi uma época divertida, sobrava tempo para ler e escrever nas madrugadas sombrias que eu passava na recepção, e muitos hóspedes sul-americanos esqueciam livros nos hotéis – muita porcaria, mas também coisas que foram muito importantes para minha formação. Meu processo é muito orgânico, então esse romance, o “As fantasias eletivas”, nasceu de um conto que mostrava a vida dos recepcionistas de hotel. Mas sempre fiquei com a sensação de que não havia exorcizado de vez esse tema. Então, ao redor desse conto, surgiram algumas obsessões, e eu queria escrever um romance sobre essa época, mas saiu outro absolutamente diferente, mais focado na solidão, na escrita, com um personagem forte como Copi surgindo e tomando conta do livro, deixando de lado Renê, que deveria ser o grande anti-herói. Para mim, literatura é sobretudo risco, você corre riscos a todo instante, na escolha dos personagens, da abordagem. Eu sempre vejo meus livros como móbiles, e não como algo plano, então esse livro é, na verdade, muitos livros, e precisei de ajuda de outras linguagens para criar e dar conta desse imaginário. Tem uma frase no livro que vai ao encontro disso: “Tem muita palavra no mundo”. Em “As fantasias eletivas”, temos o choque de dois mundos, o letrado e o iletrado, e ambos são açoitados pela solidão. Esse livro é, na verdade, muitos livros, com diversas camadas, que vão se moldando de acordo com a percepção do leitor. A travesti-escritora do “As fantasias eletivas” adotou como nome de guerra o pseudônimo do escritor, quadrinista, dramaturgo e ator-travesti argentino Raúl Damonte, que usava Copi como nome artístico. Além de grande escritor, admirado por César Aira e muitos outros, Copi foi um importante ativista gay. Foi uma forma também de mostrar o quanto a personagem do livro é um espelho sem fim, um espelho da própria escrita. E tomara que isso de alguma forma ajude a difundir o nome do Copi, que foi de carne e osso no Brasil. Comecei a traduzir (por prazer, ninguém me encomendou) aquele belo ensaio do César Aira sobre o Copi, mas preciso achar tempo para finalizar.

 

LA PECERA - Você toca numa questão interessante, que é a divulgação do autor hispano-americano no Brasil, sobre a qual vou me deter aos argentinos. De uns anos para cá, tivemos a tradução de jovens escritores por aqui, a exemplo de Diego Vecchio, Andrés Neuman e Samanta Schweblin, com ótimas críticas e considerável repercussão. Diante disso, por que a mão contrária, a que condiciona o ingresso de jovens autores brasileiros no mercado literário de nossos países vizinhos, ainda é muito pouco frequentada?

 

CARLOS  HENRIQUE SCHROEDER - Os argentinos sempre tiveram uma boa recepção por aqui, há um respeito muito grande pela literatura do país vizinho, pelos numerosos grandes escritores, mas também pela história e geografia. Essa rivalidade que foi criada artificialmente pela mídia, para render pontos de audiência no futebol, é uma das coisas mais estúpidas que já vi. Talvez essa relação ora simbiótica e ora predatória do mercado argentino com o mercado espanhol tenha prejudicado uma melhor penetração brasileira na Argentina nas décadas passadas. Mas acredito que a culpa maior seja dos agentes e dos próprios escritores, grande parte se esforçou para ser reconhecido ou publicado ou divulgado nos EUA, na Inglaterra, na França, e muito poucos souberam ler a importância do mercado argentino. Mas as coisas estão mudando, jovens autores(as) brasileiros(as) contemporâneos como Veronica Stigger, Luisa Geisler, Ricardo Lisias, Laura Erber e Marcelino Freire estão saindo por lá, e isso é muito importante. Ah, e você falou da Samanta, eu adoro os livros dela e da Selva Almada.

 

LA PECERA - Mas convenhamos que essa boa recepção se deve muito a um grupo específico de autores das décadas de 60 e 70, sobretudo aqueles que lideraram o chamado boom do realismo mágico. Aliás, aqui vale um parêntese: é interessante notar como esse é um gênero ainda muito vivo na ficção recente de autores hispanos (vide a própria Samanta Schweblin), porém, apesar do legado de nomes como Murilo Rubião e J. J. Veiga, acabou marginalizado por aqui. A que atribui essa condição? E você nunca foi picado pelo bicho da literatura fantástica?

 

CARLOS HENRIQUE SCHROEDER - É verdade, mestres como Murilo Rubião e J. J. Veiga ainda hoje não recebem o espaço que merecem, dos leitores, da crítica e da mídia especializada. A mesma coisa acontece com os autores contemporâneos de literatura fantástica, e eu não consigo entender isso. Rótulos mercantilizam as coisas, facilitam envelopamentos e julgamentos rasos, o que deveria importar é a qualidade da narrativa, a sua potência, mas nem sempre é assim, e preconceitos acabam por sepultar grandes livros, ainda mais no Brasil. Eu tenho alguns contos, ainda inéditos, que são fantásticos, e um projeto de romance, que não está caminhando.

 

LA PECERA - Agora fiquei curioso. Teria como falar sobre o que é esse romance? As influências, talvez? Um pouco da temática?

 

CARLOS HENRIQUE SCHROEDER - Eu posso falar sobre aquele que estou trabalhando agora. O romance "O castelo de cartas de Juan Taró" une uma miscelânea de gêneros: scifi, fantasia, cavalaria cibertrônica, guerra. A história se passa nos Estados Unidos do Sul (república formada por RS, SC e PR a partir de 2030) e é narrada por Rodrigo Camacuã, um lutador de Artes Marcias Mistas (MMA) aposentado que é uma espécie de Pelé deste novo país. A transformação geopolítica, econômica e social desta nova república pelos olhos de Camucuã é um dos motes do romance. Os rodapés do pesquisador Juan Taró atravessam outra camada: fatos históricos de 2020 até 2046, que implodiram o sul do país dão o tom dessa distopia. Tropas dos Estados Unidos do Sul invadiram o Uruguai em 2039 pelo descumprimento de um obscuro acordo comercial de 2022. Maior produtor de Canabis orgânica certificada e de vinho Tannat do mundo,  dois dos produtos mais luxuosos da época, o Uruguai era a sétima potência econômica do mundo e principal parceiro comercial da Argentina e Paraguai, que imediatamente declararam guerra ao invasor. O ditador Marcelo Castro, presidente de São Paulo, manteve-se neutro durante o combate. Os Estados Unidos do Sul foram derrotados em apenas oito meses de combate, e o território foi divido entre os três países vencedores. O que antigamente era Santa Catarina, ficou com a Argentina, o antigo Rio Grande do Sul com o Uruguai e o antigo Paraná, com o Paraguai. O livro é narrado em Portunhol Selvagem, idioma artificial surgido de  um movimento cultural criado no início dos anos 2000 por um grupo de escritores, e divulgado principalmente pelo poeta brasileiro Douglas Diegues. O portunhol selvagem, proposto na época, era uma mistura de português, espanhol e guarani, e a  inspiração veio da antiga tríplice fronteira onde Paraguai, Brasil e Argentina se encontravam. Depois da guerra, uma espécie de portunhol selvagem passou a vigorar nos estados ocupados que outrora se chamavam Estados Unidos do Sul. Pretendo dedicar o livro ao escritor Wilson Bueno, que em 1991 escreveu "Mar paraguayo", grito de liberdade linguística que mescla guarani, espanhol e português. Como é um projeto que exige muita pesquisa e alguma futurologia galopante, demorarei alguns anos para terminá-lo. Vou devagar e sempre nele.

 

LA PECERA - Seus livros têm uma relação muito estreita com Santa Catarina, atribuindo ao estado, muitas vezes, uma condição muito mais relevante que a de cenário ou de mera ambientação. É uma necessidade vital para sua literatura ser norteada pelo lugar onde vive?

 

CARLOS HENRIQUE SCHROEDER - A fragmentação identitária contribuiu para criar um desentendimento do que é ser e ocupar um território catarinense. Pois um lado quer ser açoriano, outro europeu, outro gaúcho: enfim, parece-me que nem o catarinense quer ser catarinense. Eu não entendo muito bem este estado, e isso faz com que eu me debruce sobre este estado rico e conservador, na tentativa de captar alguma essência. O Juan Jose Saer, por exemplo, escreveu livros magníficos em diálogo com Santa Fé, quem me dera ter um pouco da percepção e talento dele.

 

LA PECERA - Tratando de Saer, há algo que sempre achei mal resolvido por aqui. A literatura argentina, ainda sangrando pelo peronismo e, depois, pelo videlismo, nunca teve problema para confrontar e expor os crimes da ditadura. No Brasil, porém, esse é um tema que levou tempo para vir a proscênio, e, sinceramente, ainda o acho pouco explorado. Por que acredita que a geração que nasceu nos anos 80 não teve a necessidade de abraçar o tema, a exemplo do que ocorreu na Argentina?

 

CARLOS HENRIQUE SCHROEDER - É certo que as ditaduras na Argentina e no Chile foram muito mais sanguinárias do que o regime militar no Brasil, e muito bem confrontadas pela literatura, na época e nos anos posteriores. Tivemos mais de 30 anos de governo militar no Brasil, oscilando entre períodos mais ou menos truculentos, com censura explícita. Foram períodos sombrios, e como a transição foi pacífica,  é claro que houve uma "limpeza" nos arquivos e tudo foi minimizado. Comemoram a liberdade e esqueceram de trinta anos de censura e de violência, de caçar os criminosos, e parte da culpa é da imprensa, sempre de conluio com os poderes. Há um ditado popular no país que diz que "o Brasileiro tem memória curta", acho que não apenas tem memória curta, mas tende a abrandar e minimizar as violências sofridas, e é facilmente ludibriado por quaisquer comunicações, vide os protestos recentes contra "a corrupção". Mas quando derrubaram o governo Dilma, se aquietaram. E quando todos descobriram que o novo governo (que assumiu através de um golpe parlamentar), o congresso e o senado estavam podres, contaminados até a raiz do cabelo com corrupção, ficaram quietos. E estão aí, todos eles. Somos eternos iludidos, numa republiqueta sem estabilidade política e financeira (a Argentina não é diferente). E, realmente, a literatura brasileira de 1985 até 2017 produziu poucos grandes livros sobre a época da ditadura, e está muito longe de refletir a realidade brasileira, como pudemos ver naquele estudo da professora Regina Dalcástagne, que analisou romances do ano 1990 até 2004, e constatou que a literatura brasileira contemporânea era basicamente escrita por homens, brancos, morando nas cidades, e tem como protagonistas homens, brancos, vivendo nas cidades. Ou seja, um país iludido, uma literatura iludida.

 

LA PECERA - De ilusões a fantasias, queria retornar ao livro. No ano passado, o "As fantasias eletivas" ganhou uma tradução para o espanhol. O que significa ter um livro editado em outro idioma para um jovem escritor brasileiro? É mais uma conquista ou um capricho?

 

CARLOS HENRIQUE SCHROEDER - Eu fiquei muito feliz, é uma conquista e um capricho, principalmente para o ego. Eu já trabalhei em jornais, editoras, eventos literários, então não me deslumbro. Hoje em dia, uma poderosa agente literária pode colocar um livro fraco em dezenas de países, e um crítico famoso,  mas irresponsável, canonizar esse livro, e a imprensa colonizada referendar e difundir, enquanto uma centena de autores geniais nem conseguem publicar ou divulgar ou arrumar cem leitores decentemente. Muitos grandes livros somem, e emergem pela generosidade dos leitores. Os EUA hoje são os maiores exportadores de porcarias literárias com tarjas escritas "genial", "livro do ano" ou "uma voz original", e ajudam a exterminar a bibliodiversidade mundial, com suas cadeias de lojas, jornais, agências et cetera. É por isso que me interesso tanto pelas pequenas editoras, ainda não contaminadas, ou por autores e autoras que enxergam outras perspectivas sociais, como Allan da Rosa ou Conceição Evaristo, por exemplo. Eu fiquei feliz quando a Mercedes Vaquero, da Maresia Livros, de Barcelona, comprou os direitos do livro, sobretudo por causa da proposta da editora: uma casa editorial pequena, que só publica autores brasileiros, com muito cuidado e carinho. Assim como fiquei feliz com a resenha positiva do livro no El País, mas não esqueço meu lugar: sou um caipira, um nerd do interior do país, com dois filhos para alimentar e uma fila interminável de livros para ler. Não me importa se sairão mais traduções ou se ganharei algum prêmio , eu só quero poder continuar lendo e escrevendo, e pagando as contas. Sei que isso vai me salvar do museu do rancor no futuro.

 

LA PECERA - Você é o idealizador do Festival Nacional do Conto e da Feira do Livro de Jaraguá do Sul que, na edição de 2015, contou com a participação do escritor argentino César Aira. Qual a importância de provocar a interação entre a nossa literatura e a argentina? E o que lhe leva a ser um defensor homérico do conto?

 

CARLOS HENRIQUE SCHROEDER - Aira é um escritor com muitos admiradores em Santa Catarina, principalmente na academia. Lembro que veio uma turma inteira do mestrado, com o professor Joca Wolf, da Universidade Federal de Santa Catarina, para ver a conversa com ele, que foi sensacional. É um dos escritores mais inventivos em atividade, e gosta da literatura brasileira, de Noll, Sérgio Sant'Anna, Dalton Trevisan. Temos muito a aprender com a literatura da Argentina, e se houvesse um intercâmbio maior, certamente enriqueceríamos nosso espírito de latinidade. Quanto ao conto, é uma defesa natural, pois dentre os escritores brasileiros vivos, os que detém os melhores conjuntos de obras, são contistas em essência: Lygia Fagundes Telles, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Sérgio Sant'Anna e Luiz Vilela. Simplesmente não entendo o desprestígio do conto no Brasil, pelas editoras, imprensa e eventos.

 

LA PECERA – Numa pergunta anterior, você exaltou a capacidade das editoras de médio e de pequeno porte de revelarem autores que acabam desprezados pelos cadernos literários, pelos grandes selos, pela perspectiva geral. Concordo com toda a colocação, contudo, fazendo um pouco do papel de advogado do diabo, você não acredita que tem muita gente despreparada lançando livro, quando o papel desses editores seria incentivar os novos autores a não terem pressa e apurarem o ofício da escrita?

 

CARLOS HENRIQUE SCHROEDER - Um bom número de editoras pequenas e médias ajuda na consolidação da bibliodiversidade de um país. Uma editora que publica em sua maioria livros ruins, pode assim, do nada lançar um grande livro. O tempo é o melhor crítico literário. Mas é claro que existem livros que são puro desperdício de papel, e que o editor publicou para poder pagar suas contas. O autor vai aprender naturalmente o seu lugar, com as cacetadas que levará ao longo da caminhada, e o editor descuidado ou aproveitador já sabe seu lugar, e dificilmente sairá dele.

 

LA PECERA – Vale a pena ser escritor no Brasil?

 

CARLOS HENRIQUE SCHROEDER - Bom, eu escrevo porque sou neurótico e a escritura, essa mínima espécie de esquizofrenia (onde você dá voz a outras vozes) é uma forma de colocar ordem no caos que são minhas referências, nos personagens que surgem, nas ideias que não cabem na rotina comum. E assim, por menos leitores que eu tenha, eu os alimento com outras perspectivas. É também uma forma de resistência, pois consigo dar voz aos marginalizados. Então vale a pena ser escritor no Brasil, sim, esse país quebrado e com pouco esperança, pois embora digam o contrário, a literatura ainda é uma arma perigosa.

 

 

*Carlos Henrique Schroeder nasceu no da 9 de junho de 1978 em Trombudo Central, em Santa Catarina.  Publicou vários livros, entre o conto, o romance e a dramaturgia, com destaque para as seguintes obras:  o romance "Ensaio do vazio”, lançado em 2007 e adaptado para os quadrinhos em 2012 pela editora carioca 7Letras. A coletânea de contos "As certezas e as palavras”, obra vencedora do Prêmio Clarice Lispector, da Fundação Biblioteca Nacional, em 2010. O romance "As fantasias eletivas”,  lançado no Brasil em 2014 pela editora Record e na Espanha em 2016 pela Maresia Libros. O livro também foi indicado nos vestibulares UFSC, UDESC e Acafe no ano de 2016. Eleito o melhor romance do ano de 2014 pela Academia Catarinense de Letras e semifinalista do prêmio transnacional Oceanos Itaú Cultural. Outro destaque é "História da chuva" (Record, 2015), obra contemplada pela bolsa Petrobras Cultura. É editor-associado da Revista Pessoa, de São Paulo, única publicação destinada à divulgação da literatura lusófona no país, desde 2014. Assina a coluna de literatura do jornal Diário Catarinense, todas as quartas-feiras, desde 2014.

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