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O MUNDO PRIVADO DE ELVIO GANDOLFO
FELIPE CHARBEL*

1.

Tenho simpatia por escritores com nomes estranhos, que soam inventados. Não sei qual a razão. Talvez seja um resíduo da única leitura que fiz de “Bartleby e companhia”, romance de Enrique Vila-Matas. Leitura que se apoiou, do começo ao fim, em um sonoro mal-entendido: o de que os escritores retratados ali, de Emilio Adolfo Westphalen a Carlos Dufoo Hijo, de Daniele Del Giudici a Fleur Jaeggy, não eram figuras reais, mas seres fantásticos.

Já tive vergonha das minhas desleituras. Hoje em dia acho graça. No caso de “Bartleby e companhia”, me tornei por vias tortas o leitor avulso de um livro imaginário, cópia invertida do texto original. De quebra me beneficiei, embolsei o troco: o interesse por nomes que parecem inventados foi se expandindo, virou cisma, depois obsessão. Sinto que essa peculiaridade contribuiu para ampliar, mesmo que só uns poucos milímetros, a extensão territorial da minha vida interior.

2.

A primeira vez que ouvi falar em Elvio Gandolfo foi durante uma conversa de bar, no antigo Botero. O Antonio e o Rodrigo tratavam das aquisições recentes da editora Papéis Selvagens. “Aquisições” é um modo de dizer: o que eles queriam era publicar livros obscuros de escritoras e de escritores que pouco circulam no Brasil. Do argentino Gandolfo, a ideia era traduzir uma novela chamada “Ônibus”. Deve sair por aqui no começo de 2019.

Elvio Gandolfo: o nome atiçou minha imaginação, provocou uma enxurrada de associações livres, Elvis Presley, Elvis Costello, Leonardo Gandolfi, Galdalf de “Senhor dos Anéis”, uma coisa esbarrando na outra pela lógica da boa vizinhança. Gandolfo me entusiasmou antes dos seus livros, do mesmo jeito que me afeiçoei a Del Giudici sem ter lido “O estádio de Wimbledon”, ou a Fleur Jaeggy antes de topar com “I beati anni del castigo”. Ainda me encanta que esses livros realmente existam, que tenham os títulos que têm. Gandolfo, para mim, foi personagem antes de ser autor.

Honrando o critério dos afetos, incluí o escritor argentino no livro que acabava de escrever, um diário de releituras. É uma aparição relâmpago. Na cena, três amigos fazem a limpa em alguns sebos do Rio de Janeiro, e “Mi mundo privado” é uma das preciosidades que eles garimpam nos balaios dos saldos. Na época não me dei conta, mas só mesmo na ficção isso seria possível: é que “Mi mundo privado” saiu em setembro de 2016, e a entrada do diário é de junho do mesmo ano. Vai ver que um editor argentino esqueceu a prova do romance sobre o balcão de um desses sebos, e o livreiro a repassou na mesma hora aos seus clientes cobiçosos. Como não poderia deixar de ser.

3.

A primeira vez que tive em mãos um exemplar de “Mi mundo privado” foi numa charmosa livraria porteña, de corredores estreitos. Perguntei ao livreiro se ele possuía no estoque alguma coisa do Gandolfo. “Tenho todos os livros dele”. Na realidade só tinha dois: o novíssimo “Los lugares”, publicado no começo de 2018, e “Mi mundo privado”. Achei a capa brega: um monstro verde, com jeitão de dinossauro herbívoro, espicha a cabeça em um rio de águas calmas; apoiada num fusca estacionado sobre uma ponte, uma mulher fita o vazio. É possível que o réptil prepare uma tocaia, mas não deve ser o caso. Ele parece absorvido nos próprios dilemas, seus dilemas de besta pescoçuda.

Mudo de ideia. A capa é boa, o tom é insinuativo. Evoca alguma coisa de Hopper (o traço, as cores, a atmosfera), mas também uma imagem que me escapou completamente, e agora se revela óbvia: a célebre foto em preto e branco do Monstro do Lago Ness, “the surgeon’s photograph”, tirada em 1934.

4.

Sempre quero, e nunca consigo ler em viagens. No quinto dia, a minha companheira teve febre e dor de garganta. Como não queria sair sozinho e precisava cuidar dela, abri o vinho que tínhamos comprado na noite anterior. Deitado no sofá velho de uma pessoa que não conheço, li “Mi mundo privado” do começo ao fim. Tomei notas num caderno:

“El día”, ou o romance que Gandolfo não escreveu: “inundado de detalles minúsculos de la vida cotidiana”. Como no livro que leio.

*

Para ficar de pé, um romance precisa de bem pouco. Voltar a Naipaul, “O enigma da chegada”.

*

O documentário sobre as arraias gigantes: jogo no Google, encontro com facilidade. Três minutos que para Gandolfo parecem bem mais. Assisto outra vez. É lento, é bonito.

*

O que importa é como o romance impõe seu ritmo: ralentar o tempo, desapertar os parafusos do mundo. Como aqui nesse sofá em Buenos Aires. É só por isso que a gente viaja. Nada a ver com acontecimentos.

*

Descoberta: a palavra que Gandolfo usa quando encontra o seu mundo privado. Como na chegada a um novo continente, a terras virgens. Mas essas terras já foram pisadas: a vida íntima, a subjetividade. O que está em jogo, afinal? Que ninguém vai pisar nessas terras por você. Acho que é isso.

*

O “sonho do inconsciente coletivo”, imensas baratas de pedra. A quantidade de pessoas habitando o planeta incide sobre a qualidade, afeta a nitidez dos sonhos. Acho graça.

*

Matéria trivial, propositalmente ordinária. Penso na “Novela luminosa”, no mundo privado de Levrero, que não o nomeia assim. A mesma coisa só que diferente: Gandolfo me leva a Montaigne, Levrero a Rousseau, às aflições de quem confessa. Gandolfo acalma, Levrero agita. Convergências do material: Gandolfo é Levrero sem o “diário da bolsa”, um Levrero só com momentos luminosos.

*

O bisavô que morre durante a partida de xadrez: o adversário se cansa de esperar, o cutuca, ele não se mexe. Morreu com a cabeça colada no peito. O incontrolável e o aleatório.

*

Todo o acúmulo de cismas, peculiaridades, paranoias: os mínimos tijolos de que uma pessoa é feita.

*

O mundo privado é espaço. A breve extensão da nossa contingência na superfície concreta do mundo.

*

“Mi mundo privado se ocultó durante años y años detrás de la conciencia, sin decir una palabra, sin proyectar una imagen, a la espera”.

5.

Revejo o documentário sobre as arraias gigantes, releio as primeiras páginas de Mi mundo privado. Depois de oito meses, ainda me admiro com os saltos no ar, com os rodopios dos bichos. Sorrio com as barrigadas estrondosas na água: elas me transportam às férias da infância, às brincadeiras na piscina. Queria voltar no tempo. Não para a infância, mas para o apartamento gracioso, com cheiro de curry, em um bairro chique da capital argentina, a casa de estranhos. Sinto que meu mundo privado já se mistura ao do escritor de nome curioso e sorriso largo, ao irmão de Levrero, ao sobrinho de Stendhal, ao bisneto de Montaigne. Essa família de exploradores que nunca precisaram se levantar do sofá para conhecer a verdade.

A minha verdade é que estou onde estou, preso ao aqui e agora. Nesse lugar as pessoas estão tristes, parecem doentes. Ando nas ruas e ninguém tem o sorriso de Gandolfo: “el mundo real es un sitio perezoso, realista, un poco bobo, enamorado de la frase ‘es lo que hay’”. Dar as costas para a besta, me aguentar enquanto posso nessa ponte insegura. Fincar a bandeira numa terra bem pisada. Ocupar o espaço interior: não me parece má ideia.

 

 

*Felipe Charbel é escritor e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Publicou em 2018 “Janelas irreais – um diário de releituras” (Relicário Edições), livro que transita entre a ficção e o ensaio ao apresentar um narrador que relê alguns romances decisivos na sua formação como leitor, e toma notas num caderno. O seu propósito é voltar a livros que o fizeram feliz (como “Os detetives selvagens”, de Roberto Bolaño; “O teatro de Sabbath”, de Philip Roth; “Quase memória”, de Carlos Heitor Cony; “Ruído branco”, de Don DeLillo), e procurar nessas obras traços da pessoa que foi em outras épocas.

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