APROXIMAÇÃO A WAKEFIELD, OU MORRER CONTINUANDO VIVO
*Gustavo Melo Czekster
Engana-se quem pensa que um conto seja somente um instantâneo da realidade, uma maneira de escrever duas histórias (uma aparente e outra oculta) dentro da mesma estrutura. O verdadeiro conto é um buraco negro: suga o leitor para dentro da sua força negativa, rouba a sua tranquilidade, destrói a ilusão de um mundo ordenado. Ao invés de contos preferidos, eu possuo uma lista privada de buracos negros: “Casa tomada”, de Cortázar, “Reverdecer”, de Bioy Casares, “Mulheres desesperadas”, de Schweblin, “Mil noites e uma”, de Juarez Guedes Cruz, “A insolação”, de Quiroga, para ficarmos somente nos abismos latino-americanos.
Entre os contos que insistem em me perturbar, assim como quebra-cabeças nos quais faltam peças decisivas, um ocupa lugar de destaque. Trata-se de “Wakefield”, escrito por Nathaniel Hawthorne, em 1835, e incluído no livro “Twice-told stories” (1837). Desde a primeira vez em que o li, fui atraído para a sua órbita. A pergunta inserida no conto repercutiu no meu espírito: “Que espécie de homem seria Wakefield?” Eu não sei. A cada releitura que faço, Wakefield ganha outro significado: a minha visão sobre ele se modifica ou talvez seja eu mesmo que tenha mudado.
Farei uma síntese apertada, e recomendo a leitura do conto para que cada pessoa experimente a própria perplexidade: Wakefield é um homem normal que, em uma manhã rotineira, se despede da esposa, sai de casa e não volta mais. Muda-se para um lugar próximo e, durante vinte anos, dedica-se a observar a vida que abandonou. Sem perguntas, sem respostas, sem explicações, sem nada. Depois de 20 anos, novamente sem motivo, bate na porta de casa, senta-se na sua poltrona favorita em frente à lareira e continua a viver como se nada tivesse acontecido.
Como pode uma história ser tão estranha, tão compreensível e tão misteriosa é um desafio que já assombrou muitos leitores. Nabokov foi um deles, quando declarou, irritado, que conseguia entender o conto, mas não explicá-lo. Outro leitor foi Henry James, que, na ilusão de que a vida de um homem pode trazer luzes para a sua obra, foi procurar detalhes do autor de “Wakefield” para tentar entender uma única história. Aliás, é possível que esse conto tenha tido como um dos seus primeiros leitores Herman Melville: ele era vizinho de Hawthorne, e os dois trocavam cartas com impressões sobre as histórias que estavam escrevendo. Harold Bloom, quando incluiu Hawthorne em “O cânone americano”, perguntou: “Por que essa estranha historieta de Hawthorne ganha uma permanência tão inquietante?” Após refletir um pouco, arrematou com assombro: “’Wakefield’ me amedronta porque esposa e lar constituem minha realidade na velhice”. É possível que o leitor mais abnegado tenha sido Jorge Luis Borges, que dedicou quase oito páginas de um ensaio resumindo o conto, antes de concluir que é uma história de Kafka equivocadamente escrita quase setenta anos antes por Hawthorne. A ideia de que escritores escrevam histórias antes dos seus efetivos autores é aterradora demais para refletirmos a respeito.
O mistério persiste. Não sabemos os motivos de Wakefield; entendemos, mas não compreendemos. Todos já tentaram fugir da sua vida, imaginando como será o mundo quando não estivermos mais nele: como podem as pessoas continuarem a viver sem que estejamos presentes? Se trago o conto à tona hoje, no momento em que o mundo passa por uma pandemia e as pessoas se fecham nas próprias casas, é por que o final do conto segue retumbando: somos todos partes de uma engrenagem da qual não conseguimos nos desligar sem consequências. Basta um passo para o lado, o encontro indesejado com um vírus, o sair de casa com rapidez culpada atrás de frutas, para que deixemos a engrenagem humana da qual fazemos parte e nos tornemos os Grandes Párias do Universo: para sempre excluídos, não-lembrados, com nomes que serão apagados enquanto outras pessoas assumem o nosso emprego, o nosso relacionamento, os nossos sonhos. Olhamos pela janela e vemos o mundo levando a vida sem a nossa presença, como se não fizéssemos falta, enquanto nos protegemos da doença misteriosa. Vemos fotos sem as nossas imagens; ouvimos falar de festas para as quais não somos convidados. Assim como Wakefield, estamos fora da engrenagem do Universo, olhando como o mundo se comportará quando morrermos: com a indiferença de uma máquina que não possui parafusos indispensáveis.
*Gustavo Melo Czekster é formado em Direito pela PUC-RS, mestre em Letras (Literatura Comparada) pela UFRGS e doutorando em Escrita Criativa pela PUC-RS. É palestrante de temas ligados à literatura, resenhista de sites e ministrante de oficinas literárias. É escritor, autor de dois livros de contos: “O homem despedaçado” (2013) e “Não há amanhã” (2017). Com o segundo livro, foi vencedor do prêmio Açorianos 2017 (categoria Contos), do prêmio AGES de Literatura (categoria Contos e categoria Livro do Ano) e do prêmio Minuano de Literatura (categoria Contos), tendo sido finalista do Prêmio Jabuti 2018 (categoria Contos).