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O MAIS PODEROSO INSTRUMENTO

DE COMUNICAÇÃO

por Itamar Vieira Junior*

Eu tinha dezoito anos quando, uma semana depois de começar a leitura, virei, com o vazio da despedida, a última página de Cem anos de solidão. Durante dias eu voltaria a folhear o livro, procurando os trechos que mais me marcaram e que, por mais que eu quisesse me engajar numa nova leitura, insistiam em me acompanhar: o pelotão de fuzilamento, a descoberta do gelo, os três mil mortos do massacre de Macondo, os quatro anos, onze meses e dois dias da chuva que desabou sobre a pequena cidade. Márquez criou um universo tão completo e onipresente, onde o tempo nos movimenta em direção à nossa própria insignificância, que pela primeira vez em muitos anos eu não quis escrever: contentar-me-ia apenas em ser leitor dos seus livros e de outras obras igualmente pungentes.

Revelou-se a mim a mais misteriosa certeza: era possível viver outras vidas sem tirar os pés do chão. Anos e anos de leitura até Cem anos me guiaram pelo caminho da imaginação e acabaram por confirmar o poder humano de criar. Surgia no silêncio da minha vida íntima a possibilidade da sucessão de dias e noites, da luz e da treva, do surgimento dos animais da terra e do céu. Era como se pudesse compreender o ímpeto do Deus do livro Gênesis, que do nada criou um mundo complexo e sofisticado. Permitiram-me acessar a relatividade do tempo e do espaço, e de como podemos manipulá-lo, contrariando as mais imutáveis leis da Física.

Muitos anos mais tarde, precisamente em 2018, quando foi celebrado meio século do romance mais conhecido de Garcia Márquez, li artigos e matérias sobre a carpintaria da obra. Por trás de todo aquele universo prenhe de vida e sonho, se revelava a matéria-prima da vida, contada através de gerações. Contada, sim, através da oralidade transmitida de pais para filhos, de avós para netos. No caso de Márquez, talvez as mais importantes tenham sido as narrativas de Tranquilina Iguaran, sua avó materna, a quem sempre creditou boa parte da origem de suas histórias e, principalmente, a maneira de contá-las.

Qualquer conversa mais longa tende a ser uma narrativa de fatos, histórias, tramas, personagens, contada de forma a engajar o interlocutor no que se quer comunicar. Daí o sucesso das obras de Márquez, ou de José Saramago que fez da oralidade um projeto estético de sua extensa obra. Recordo-me de como me intrigou a minha primeira leitura de Saramago – A Jangada de Pedra -, na mesma época em que havia lido os primeiros livros de Garcia Márquez. Não foi um livro que li de um só fôlego: demorei a me apropriar do fluxo da narrativa. Só no silêncio da leitura, naqueles momentos em que ouvimos a nossa própria respiração, é que se transfigurou diante de mim o óbvio: a escrita caudalosa, de longos parágrafos e mínimos sinais de pontuação – não há uso de travessão, por exemplo -, era a reprodução mais próxima do nosso falar. Essa descoberta me levou a ler sua obra com o interesse que as grandes obras despertam.

Confirmei essa premissa anos depois, quando mergulhei em trabalhos de investigação com populações camponesas, coisa bastante diferente do fazer literário; mas como sou apreciador da literatura, terminou por saltar-me aos olhos. Entre os camponeses, costumava gravar nossas conversas sobre a diversidade de suas origens, os costumes e as atividades de roçado. Depois ouvia e as transcrevia, durante dias. Em determinado momento, eu estava absolutamente absorto na cadência e na musicalidade dos falares. Imaginei o quanto aquele ritmo revelava a possibilidade de um projeto estético, talvez não tão novo, mas que abrangesse novamente a dimensão e a diversidade do Brasil no campo da literatura. Algo experimentado por diversos autores no nosso país, de Guimarães Rosa a Jorge Amado, e que obteve resultados diferentes. Como fizeram, da mesma forma, Garcia Márquez e Saramago.

A linguagem, que representa a pluralidade dos falares, é o nosso mais poderoso instrumento de comunicação. É a partir dela que somos convidados a estabelecer um pacto com o leitor – e o inverso se estabelece também – para trocarmos momentaneamente de vidas. Como a leitura é uma experiência íntima, esse contato acabar por possibilitar essa troca. Talvez por isso obras tão diversas, do Oriente ao Ocidente, tenham a capacidade de nos tocar, através desse atributo que desenvolvemos melhor – ou pelo menos achamos - do que qualquer outra espécie.

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*Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador. É autor da coletânea de contos “A oração do carrasco” (2017), finalista do Prêmio Jabuti de Literatura. Tem contos traduzidos e publicados em revistas especializadas na França e EUA. Seu mais recente trabalho é o romance “Torto Arado”, vencedor do prestigiado Prêmio LeYa 2018.

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