O DELICADO CONTORNO DA MÃO ESQUERDA DELE POUSADA NO AZUL MACIO DO JEANS QUE VESTE SUA COXA DIREITA
por Walter Moreira Santos
Mas eu comecei então a pensar no tempo como tendo uma forma,
alguma coisa que pudesse ser vista, como uma série de transparências líquidas,
uma por cima da outra. Você não olha para trás,
no tempo, para o passado, mas para baixo, como a água.
Margaret Atwood, Olho de gato
O delicado contorno da mão esquerda dele pousada no azul macio do jeans que veste sua coxa direita se assemelha à sombra do avião sobre o Atlântico a 11.000 metros de altitude. Uma mão delicada, porém firme. Pequena, talvez, para uma mão de homem, apesar da profusão dos pelos negros – aquele prenúncio de virilidade – sobre a superfície muito branca da pele; mãos firmes e implacáveis nas horas de cirurgias delicadas; as únicas mãos do país capazes de realizar cirurgias cardíacas em bebês ainda no ventre da mãe. A mesma delicadeza firme que sabia como lhe dar prazer como nunca antes alguém proporcionara. Os passageiros quietos, em completo silêncio, sem idas e vindas ao toalete; o sorriso quase sincero da comissária de bordo ao trazer um travesseiro, a ternura quase sincera ante a visão do seu companheiro dormindo – muito embora servindo aquele esforço apenas para mascarar um profundo desprezo ante a visão de dois homens tão jovens e tão bonitos formarem um casal. Porém, nem essa pátina de imperfeição estraga aquele momento – antes, aprofunda-o e dá a você o prazer de uma coisa proibida e só a você acessível. E há tanta, tanta promessa no ar. A renovação do contrato do seu maior patrocinador. Sua nova casa. A promoção do seu companheiro no hospital. A sua ascensão à categoria profissional na seleção brasileira de tiro com arco. Aquela escapada louca para os três dias de miniférias nas Ilhas Fiji – muito embora nada no hotel fosse como o prometido pelo site da agência de viagens. Aquele instante de precisão, ponto convergente do laser da Felicidade. Sua flecha atingindo em cheio o alvo da Felicidade a 90 metros de distância. Agora a Felicidade não era algo acontecendo distante demais para ser imaginada – embora leve, era palpável como a mão pousada sobre sua coxa. Você, que sempre teve vergonha de desejar a felicidade, e é totalmente sem vergonha para os outros assuntos da Vida. Não se pode mudar ninguém com mais de trinta anos, diziam os manuais norte-americanos de psicologia comportamental. Seu companheiro conta trinta e um anos – a partir de agora seu temperamento será imutável como o diamante lapidado se liga à beleza. Você, que nunca acreditou em amor. Você, que sempre soube que o amor nada mais é do que um ardil para vender perfumes jantares livros filmes restaurantes novos ou promessa de vida depois da morte. Você, cuja vida amorosa é uma daquelas histórias sobre cuja depravação é melhor calar. E eis que um belo dia aquela mão se estendeu para você e o tirou do caos de uma vida à deriva. Aqueles dedos, cirurgicamente, estenderam-se por sobre o seu peito tatuado e tocaram aquele coração cínico que só acreditava, no máximo, em sexo e amizade. Você, que pensava ser o amor algo que vivia dentro dos limites do sentimento de asfixia – como uma sultana molhando os pés na fonte do jardim interno do palácio, pois proibida de sair às ruas. Você e seu infinito cinismo a respeito do amor; afinal, não está escrito em todos os livros, peças, óperas, canções: amor é sinônimo de sofrimento? E não havia qualquer sofrimento naqueles dois anos de amor tranquilo como um regato límpido. Estava escrito no Eclesiastes: “maldito o homem que confia no outro homem”; no entanto, àquele homem você confiava seu coração.
Talvez fosse uma febre momentânea proporcionada pela luz astral do mar das Ilhas Fiji, aquele azul-turquesa que permanece mesmo depois de se fechar os olhos. Mas não é Amor o que ressoa dentro da atmosfera daquilo que vocês criaram – que é sólido e ao mesmo tempo frágil, que é intenso e ainda assim tranquilo? Bonsai, pescaria, gastronomia – atividades a exigir paciência, silêncio e cultura. Isso tudo era ele. Você próprio sentindo-se como um fícus, sendo delicadamente podado, nutrido até a perfeição e isso de nenhum modo o fazia sentir-se prisioneiro ou tolhido, e sim cuidado. Neste exato momento você compreende que Deus não é um ser, uma pessoa, uma força, algo nalgum ponto inacessível aos homens. Deus é um reino. Deus é um lugar. O preciso lugar onde está você agora. E você compreende só haver um modo de aquele Deus-lugar-perfeição subsistir para Sempre: se o avião inteiro explodisse. Na explosão, seu corpo seria fragmentado junto ao corpo do seu companheiro, pedaços de olhos corações ossos medula fundindo-se, amalgamando-se antes do batismo do fogo, algo entre quatrocentos e mil e duzentos graus Celsius, ainda superior aos mil graus dos fornos crematórios. Há perfeição nessa morte praticamente instantânea, no modo como vocês ficarão para sempre saudáveis e felizes na memória dos amigos; no modo como a ausência do enfrentamento da humilhação da velhice, das doenças, dos gases e de toda a imundície que se segue à decrepitude e morte do corpo. Soaria como algo a enganar a morte. Há poesia na lembrança da pequena remuneração paga aos seus parentes pela companhia aérea, um dinheiro que poderia ser usado para a construção de um jardim ou de uma piscina ou uma viagem às Ilhas Fiji – isso se algum ente querido amá-los o suficiente para refazer seus últimos passos como um modo de tê-los um pouco de volta; há poesia na imagem dos seus nomes para sempre ligados aos bons momentos desfrutados nesses espaços de lazer. Há poesia na lembrança de pequenas partículas suas e do seu companheiro, translúcidas pelo sol dos trópicos, caindo no mar e servindo para alimentar os hipocampos ou cavalos-marinhos. Ou transformando-se em plânctons. Todo o seu ser desliza para dentro do silêncio da cabine. Sua mão esquerda desliza em direção à pequena mão direita do Amor da sua vida. Aperta-a como nunca antes.
Você fecha os olhos e espera a explosão.
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Walther Moreira Santos é autor do romance O Ciclista, dos livros de contos O Metal de Que Somos Feitos e Todas As Coisas Sem Nome, dentre outras obras.