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Cuentos

Obra de Jazek Yerka

MEUS OLHOS ALEMÃES

 

Rafael Mendes

 

Esmurrei meu amigo. A gente brigou na sala de aula, a turma toda gritava. Sangrei o supercílio dele. Foi bom bater no meu amigo, pois eu estava com medo de perder a briga.

Na escola me chamavam de Alemão. Minha mãe veio da Bahia; meu pai era um galego caipira. Nunca pisei na Europa. Ainda assim, na periferia de São Paulo, eu era conhecido como Alemão, por causa da minha cor alemã, meu cabelo alemão, além dos meus olhos. Zeca, o amigo que esmurrei, era só um brasileiro com cara de brasileiro.

A gente deixou de ser amigo, depois da briga. No semestre seguinte, mudamos de escola. Crescemos, desaparecemos. Nunca mais ouvi falar de Zeca. Somente dias atrás, depois de assistir a uma reportagem na tv, pensei nele com mais demora. As imagens mostravam a marcha de pessoas com tochas e insígnias, na Virgínia. Fiquei pensando nessa história, pensando e pensando, até pensar em outra história, a minha com o meu amigo.

Eu era um dos poucos alunos que não morava na favela. Boa parte da turma morava, inclusive o Zeca. Vem daí uma das lembranças sobre ele. Eu era loiro e não morava na favela, e isto confundia a cabeça de Zeca. Para o meu amigo, eu era rico.

A gente brincava no recreio, fazia os deveres, apostava corrida na saída. Zeca me acompanhava até o meu portão, a duas quadras da escola, e seguia morro acima, pelas ruas de terra, para a sua casa. Às vezes a minha mãe deixava que o Zeca brincasse comigo, no nosso quintal, mas quase nunca eu podia ir até a casa dele.

Pouco antes de brigarmos, Zeca me disse que eu precisava lhe fazer uma visita. O pai dele havia tirado as paredes de madeira, eu tinha de ver aquilo. Agora eu moro numa casa toda de tijolos, ele disse.

Fui à casa dele, não vi muita diferença. As paredes eram de tijolo, mas o resto era o mesmo. O mesmo telhado, os mesmos móveis, os mesmos brinquedos. No quintal, o carrinho-de-mão e a enxada. O tempo todo um samba. Eu não gostei da comida, senti enjoo. Algum vizinho carpia um terreno e queimava mato; a fumaça entrava pelas frestas da casa de meu amigo. Ao ir embora, escorreguei no barro e ralei o joelho. Nunca mais fui lá.

Zeca era corda crua em capoeira, por isso ameaçava o restante da turma. Para mim, andar com ele era uma espécie de defesa. Com Zeca, ninguém mexia comigo. Tenho saudades do meu amigo. Seu sorriso branco, seu gingado.

Nossa amizade desmoronou no dia em que brigamos, mas ela já vinha ruindo há certo tempo. Numa aula de história, a professora nos ensinava sobre o período escravista. A turma inteira estava atrasada naquela matéria, e por isso não a entendemos bem. Depois da aula, Zeca me olhou com rancor, como se me culpasse.

Outra coisa que detonou a amizade foi a paixão que compartilhamos pela menina bonita da sala. Não era um assunto que conversávamos, mas estava claro que ambos estávamos apaixonados pela menina bonita, que viera do Nordeste.

Eu tinha um chaveiro com um pé de coelho. Um dia, no recreio, dei de presente esse chaveiro para a Menina Bonita. Para dar sorte, eu disse. A Menina Bonita aceitou, agradeceu, foi embora. Quando virei, topei com Zeca e seus olhos de ciúmes.

As coisas não estavam bem na casa de Zeca. Não é possível que as coisas estivessem bem na casa dele, naquela época. Na minha casa também não estava nada bem. Era um período importante da história do Brasil, o qual vivíamos, e aquilo deixava todo mundo arisco, até mesmo as crianças.

Tivemos aula vaga. No meio da baderna, a Menina Bonita me entregou uma cartinha. Zeca se enfezou, esticou os braços para mim. Fiquei com medo, mas dei-lhe logo um soco e acabei com a briga.

 

***

 

Rafael Mendes é um escritor de São Paulo. Publicou os livros “A Melhor Maneira De Comprar Sapato” e “Fôlego”. Seu romance inédito, “Nuvens Carregadas Se Aproximam”, foi contemplado com a bolsa de criação literária PROAC de 2016. Seu site é www.rafael-mendes.com.

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