A crônica como poça d’água
por Tiago Germano
No texto “O Conto-Riacho”, João Anzanello Carrascoza lembra que, para E. M. Forster, o romance é um gênero oceânico, irrigado por uma centena de rios que fazem desaguar nele suas histórias. Embarcando na analogia de Forster, Carrascoza classifica o conto como um riacho de águas plácidas, cuja superfície aparenta calmaria mas que oculta todo um ecossistema em conflito, com cardumes selvagens lutando para sobreviver e se alimentar da vegetação submersa.
A crônica não faz parte da bacia hidrográfica mapeada por Forster e por Carrascoza. Sem a vastidão de um oceano ou o ecossistema de um riacho, ela é uma poça d’água que, a depender do regime das chuvas, aparece ou desaparece em territórios impossíveis de ser mapeados. Não há perenidade na crônica. Os oceanos, os riachos, eles sempre estarão nos seus devidos lugares. Ainda que sequem, saberemos pela geografia do local que ali existiu um grande volume de água. Que ali correram rios e viveram seres que deixaram seus fósseis impressos nas pedras.
A crônica, por outro lado, não possui um lugar definido. Não possui um único lugar. Você pode imaginá-la no panorama da cidade, este local em que as poças d’água são mais frequentes. Ela está bem ali, na rua, e antes de passar por ela, intuitivamente, você calcula as dimensões do buraco. Ele não é tão largo que te obrigue a contorná-lo. Não parece tão fundo que valha a pena saltar sobre ele. Você simplesmente enfia os dois pés na poça e, sob o risco previsto de molhar apenas as solas dos sapatos, afunda até a altura dos joelhos. O mundo inteiro pausa nesse instante. Você se recupera e tenta seguir caminho. E, embora não seja tão difícil sair do buraco, ficou mais difícil caminhar do mesmo jeito. Limpo. Cheio de certezas. Sem olhar com mais cuidado para o que está em volta ou para o que ficou para trás. Sem rir da situação ou irritar-se com ela.
Assim é a crônica: esse acidente de percurso. Esse tropeço na poça d’água que, provavelmente, estará seca e não será localizada quando você voltar e procurar por ela no outro dia.
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Na certidão de óbito da literatura – um documento antigo, cada vez mais repleto de assinaturas –, a crônica sequer merece um registro formal. Mata-se o romance, esse videogame que a burguesia abandonou depois que encontrou uma diversão mais barata. Mata-se o conto, esse boneco de madeira que ficou encalhado no estoque da loja. Falar da morte da crônica no meio dessa chacina, erguer um túmulo em sua homenagem no cemitério dos gêneros, é chutar um cachorro que já estava morto há muito tempo.
A crônica desapareceu dos jornais muito antes de os jornais desaparecerem. Nosso bebê prematuro, que havia crescido numa incubadora prestes a se desligar, foi atirada na sarjeta sem a menor piedade, muito antes de as primeiras redações fecharem suas portas. Líquida que é, poça d’água que é, a crônica se evaporou e pairou no ar por algum tempo. Condensou-se e foi parar, claro, na nuvem. Sujeita à tensão elétrica da época, voltou a se liquefazer. Logo estava se derramando em novas calçadas, formando novas poças d’água que cumpriam aquela velha função de atrapalhar a caminhada dos pedestres.
Os pedestres que põem os pés nela agora não são os mesmos que puseram os pés nela no passado, obviamente. Os pedestres de agora são os mais recentes algozes da literatura: os leitores formados pela internet. São eles, dizem, que têm disparado os últimos tiros à queima-roupa numa literatura que já está com as vendas nos olhos e os cigarros na boca. Porque, sejamos francos: a literatura anda meio cega e com os dentes sujos de nicotina. A literatura anda meio soterrada embaixo das próprias cinzas. Mas não vamos nos esquecer, no entanto: a literatura sempre foi uma fênix teimosa. E se o romance segue absorvendo o discurso do seu suposto fim para se renovar; se o conto segue lucrando com as apostas clandestinas feitas por seus jogadores; a crônica não está ficando atrás.
Como quando viajou por cartas, e das cartas fez-se folhetim, e dos folhetins migrou para as colunas dos jornais impressos, a crônica está tentando, nas coxias do palco virtual, ainda no seu papel de figurante nessa peça em que o romance é o protagonista e o conto é o coadjuvante, trocar os óculos por barbas e voltar para o centro do tablado como um novo personagem.
A crônica é um ator mambembe que continuará recitando sua fala mesmo quando ruírem as paredes de todos os teatros.
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Nesse frenesi metafórico, tentemos não nos deslumbrar mais do que já nos deslumbramos. Ainda que venha transitando pelas plataformas e suportes digitais com relativa desenvoltura, a crônica ainda não parece – aos leitores da internet, pelo menos – estar desvinculada dos demais gêneros ou livre de ser confundida com gêneros novos. Para esses novos pedestres, a crônica ainda não merece a autonomia ou a maioridade que, historicamente, sempre lhe foi negada.
Insistir na autonomia e na maioridade da crônica nesse contexto, porém, me parece um tanto contraproducente. Se, no projeto da pós-modernidade, ainda é possível discutir os gêneros sob paradigmas como esses, que resvalam em fronteiras delimitadas e em hierarquizações inúteis, a crônica não precisa de uma autonomia quando ela é, por natureza, uma fora-da-lei cuja liberdade está sempre ameaçada.
A graça da crônica – talvez a única razão de sua existência – é fazer o contrabando que ela faz quando cruza fronteiras, quando desdenha de hierarquias, quando se submete a este ou aquele gênero com o único intuito de mostrar sua inadequação.
Cronista que sou, eu posso estar atuando como um banqueiro que, querendo aumentar sua fortuna, acaba roubando dos cofres do seu próprio banco. Mas eu não ousaria insistir na autonomia da crônica com um texto que, voltemos ao começo, parte de uma metáfora inspirada no romance e no conto.
Sobre a maioridade do gênero, não vamos sambar na cova de Antonio Candido – não tão cedo. Não se pode imaginar uma literatura feita de grandes cronistas, dizia ele em “A Vida ao Rés do Chão”. Não se pensaria atribuir um Nobel a um cronista, por melhor que ele fosse. Bem... Antonio Candido viveu tempo suficiente para ver um Nobel ser atribuído a um músico. Mesmo tendo ele, talvez, admitido que, diante disso, o fato de um cronista não ter recebido ainda um Nobel é meramente circunstancial, temos que entender o que o mestre quis dizer quando se referiu à crônica como um “gênero menor”: a crônica não nutre certos tipos de vaidade. Não quer ser superior nem revela qualquer complexo pela sua suposta condição inferior. É uma grama que floresce viçosa no meio de muito arbusto seco e de muita árvore apodrecida.
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Por fim, lembro-me de Jorge de Sá. Ele dizia, em um livrinho fundamental sobre ela, que se o primeiro registro literário em solo brasileiro foi a carta de Pero Vaz de Caminha, podia-se afirmar tranquilamente que literatura brasileira nasceu de uma crônica. Se nasceu eu não sei, mas que, se morrer, a literatura brasileira vai morrer numa crônica, disso eu tenho certeza.
Quando todos os nossos mares e todos os nossos riachos secarem, só restarão nos seus lugares as poças d’água. É nelas que, até sem querer, iremos tropeçar quando estivermos caminhando, sedentos, nesses dias difíceis em que a chuva irá se recusar a cair.
Tiago Germano é autor da coletânea de crônicas "Demônios Domésticos", projeto atualmente em financiamento coletivo no site Catarse. Por um dos textos do livro, venceu o Prêmio Sesc Rubem Braga no ano passado. Mora atualmente em Porto Alegre e é doutorando em escrita criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs).