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O evangelho do caos: A poesia de Ronaldo Cagiano


No seu sensível “Observatório do caos”, Ronaldo Cagiano empreende o grande mergulho temido por qualquer ser humano: na escuridão luminosa do empório de lembranças. O livro de poemas publicado pela Editora Patuá (2016) carrega a densidade de águas escuras, a dramaticidade destes tempos selvagens, a frieza de nossas vidas na urbe, mas, principalmente, a constatação dolorosa da passagem do tempo e da finitude das coisas. O poeta, espionado pelo passado, faz o inventário de um tempo que se perdeu inexoravelmente “no porão da infância”.

A matéria de sua poesia é basicamente a memória e o poeta, uma espécie de Pedro Nava dos versos, enfrenta a tarefa de remexer nesse baú de ossos e fantasmas. Seus temas tocam aquelas lembranças que deixaram cicatrizes profundas, calos enormes na epiderme do espirito, experiências irrepetíveis e que formaram o homem que agora, poeta, as transforma em versos que carregam o cheiro, o gosto, a lembrança tênue de um Proust incorporado além da prosa.

Cagiano mastiga a criança que, ainda viva em si (“O menino que fui / é hoje meu contemporâneo”), testemunha seu próprio funeral na correnteza do tempo, metáfora tremenda do rio de sua infância, o velho Pomba — seu Capibaribe cabralino, seu Tejo Pessoano — e suas enchentes e surpresas. Trilhando o território drummondiano da infância, o poeta de Cataguases lamenta a dor de não pertencer, como se o não-pertencimento atribuído a outro, não fosse justamente uma grande máscara, o seu modo de estar no mundo, a sua tentativa sempre vã de “fazer a arqueologia do inútil regresso”. O observador do caos, o próprio poeta, incorpora os diversos universos líricos a partir das citações em epígrafe de seu arsenal de leituras.

Este recurso intertextual, explode o universo semântico de seus versos, num diálogo que se completa, iluminando-se em meio à escuridão do dia que atravessa. A longa jornada do poeta, do homem que lamenta a pequenez de tudo diante da passagem do tempo. O verão que se vai, a noite que se aproxima, a morte que se faz presente na partida de um amigo, de um amor, o olvido, tudo são motivos para seus versos carregados de densidade dramática. O sacrifício da ave na mão inocente das crianças, a navalha sempre afiada de um pai, a mãe costurando o tempo, alinhavando o tecido da memória “na escuridão do ontem irremovível”, a dolorosa consciência de que já não se “fazem revoluções como antigamente”.

Há um evidente desencanto com o mundo, um pessimismo “graciliánico” profundo, fruto talvez das perdas acumuladas em sua história, a memória das “existências que se cumpriram”, o embate com as forças repressoras do real. Não por outra razão, nos declara: ‘E tudo se fez catástrofe/ Nada certo/ Tudo má sorte”. A visão pessimista do observador do caos não poderia ser diferente, o mundo não é para amadores, talvez para quem ama as dores de nele estar, o que não é o caso do poeta. A poesia é esse bicho arredio que não se deixa dominar pelas armadilhas do mundo.

A poética de Cagiano tem a virulência típica de quem não faz o jogo do sistema, de quem não se deixa levar pelas adulações típicas desse meio pleno de vaidades, desse mundinho miúdo de mãozinhas de seda, como diria o grande Raduan Nassar. A poesia de Ronaldo Cagiano não veio para nos dar sossego e paz de espírito, sua presença vem cutucar a ferida, expor o pus que o dia a dia anda a produzir. Sua verdade é aquela que nos incomoda, nos faz reler o mundo, retirar as lentes azul-bebê e perceber a violência explícita que é viver em 2017.

Quando dialoga com o maior de nós, poetas, Manuel Bandeira, ele entrega seu desconsolo, filtrado em versos, e afirma “o que vejo é um beco sem saída”. Cada poeta tem seu beco. Não, meu poeta de Cataguases, a saída é justamente a sua poesia exalando a crítica profunda, expondo o nervo dessa nossa periferia explorada constantemente, exorcizando o passado que se nos perpassa e nos impulsiona para o abismo ou para a montanha, para o vulcão ou para a cova. Sua poesia, ao escancarar as mazelas que nos cercam, a partir daquelas observadas por seu olhar atento, nos dá alternativas. Seus versos não se dispõem a adular ninguém. Isso é bom. Isso é ótimo em tempos de tamanha futilidade. Ao mergulhar em suas próprias dores, o poeta as transfigura e as torna nossas, operando a grandeza da arte. Mais que isso, assume uma postura independente, arriscando-se à porrada do sargento amarelo, aquele mesmo que calou o pobre Fabiano em “Vidas secas”, e que anda por aí, em comerciais de televisão, em jornais, na escola, no partido, na igreja, no sindicato…vigiando, vigiando.

A poesia de Ronaldo Cagiano não corre o risco de, como dizia Graciliano, “tornar-se-á inofensiva e cor-de-rosa, não provocará o mau humor de ninguém, não perturbará a digestão dos que podem comer. Amém.” Muito pelo contrário, ela é um a poesia de combate, de confronto. Uma poesia que finge a dor que deveras sente e que nos convida a reler Bandeira, Drummond, Orides, Joaquim Cardoso, Augusto dos Anjos, inserindo-se ela também em nossa tradição lírica, avançando muito além da “Verde” de sua Cataguases, declarando o seu amor pela poesia, esse gênero tão importante quanto supérfluo, uma espécie de oximoro do Pessoa: o tudo que é um nada. Mas, tu vaticinas, é justamente a poesia que “des (a) fias o novelo do meu amor”. A saída, meu amigo, é a palavra, a sua palavra,”com uma semântica sem esclerose”, o seu “possível evangelho” em meio ao caos.

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(*) Poeta, professor, compositor e ensaísta, autor dentre outros, de “O livro de Lorraine” (Novela, 1998) , “Graciliano Ramos e o mundo interior” (Ensaio), “Babelical” (Poesia, Ed. Patuá, 2018), nascido em Campina Grande (PB) e reside em Brasília.

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